Começar um texto é sempre difícil, principalmente quando se é preciso falar sobre um filme tão arrebatador. Assim como sua personagem principal, como bem lembrado por um colega de site, o filme é um furacão, vai te arrastando aos poucos e quando nos damos conta, já estamos completamente envolvidos numa história cheia de bizarrices para falar sobre algo que, de tão batido, já deveria ter sido superado, mas Emma Stone nos deslumbra trazendo à vida Bella Baxter, uma mulher em busca da sua libertação sexual, para início de conversa.
Yorgos Lanthimos é um jovem diretor grego que já nos deu filmes como A Favorita (The Favourite, 2018), indicado e vencedor de alguns Oscars, O Sacrifício do Cervo Sagrado (The Killing of a Sacred Deer, 2017), que considero um filme imperdível, e Dente Canino (Kynodontas, 2009), que também levanta discussões interessantes e curiosas. Seu trabalho até aqui se mostra consistente, uma mistura de sátira, absurdo e ao mesmo tempo com situações e dilemas comuns, que talvez você mesma tenha dentro de si. Em Pobres Criaturas (Poor Things, 2023) não poderia ser diferente, aqui nós podemos falar sobre a descoberta do prazer sexual, a busca das mulheres por igualdade de direitos, incluindo seus prazeres, a criação e o desenvolvimento de um ser humano, os limites da ciência e os dilemas éticos e morais que nos rodam e reprimem o tempo inteiro.
Bella foi salva por um médico apaixonado por experimentos, criativo, que coloca sempre a ciência à frente dos seus projetos, tendo em vista que foi assim que seu pai o ensinou, a amar a medicina e os experimentos científicos, categorizá-los, estudá-los, lançar novas teorias ao mundo. Porém, diferente da sua própria vida, o doutor Godwin, encenado pelo brilhante Willem Dafoe, não consegue tratar Bella unicamente como um experimento, sentimentos paternais são desenvolvidos e são eles alguns dos motivos pelos quais nossa protagonista viverá uma jornada de descobertas sobre o mundo e sobre si. Ao salvar sua vida de forma nada convencional – deixo essa surpresa para quando assistirem -, Godwin se torna a figura paterna de Bella.
Bella é destemida, ainda está aprendendo a viver, apesar de ser uma mulher adulta, que se joga de corpo e alma nos seus próprios experimentos: a sua vida no mundo. A casa em que mora é também seu confinamento, sua prisão. Apesar daquele homem visto como sua figura paterna, que a alimenta, a fornece um lugar seguro e divertido para morar, Godwin a transforma em prisioneira, tentando controlar o ambiente ao redor de Bella, ele tira justamente o que mais fará falta para ela: sua liberdade, sua chance de escolher e decidir por si o que gosta ou não, o que lhe dá prazer ou não, até onde ela pode chegar ou não. Ficar em um lar totalmente preparado para sua existência ou descobrir por si as motivações dessa existência? Um ser humano consegue ou não controlar todos os ambientes e variáveis da vida de um outro para avaliar, medir, estudar?
É a partir da descoberta do prazer sexual que Bella irá desbravar e descobrir o seu próprio mundo, os seus gostos pessoais, seus desejos e sua razão para estar no mundo. Uma mulher que deseja conhecer o mundo e tudo o que ele tem para lhe oferecer, não só os prazeres, mas também as tristezas, as injustiças, o que é feio do mundo. Bella sai da redoma criada ao seu redor para colocar a si mesma em risco, para encontrar uma vida além daquelas paredes ao seu redor. Bella quer viver e vai lutar custe o que custar para enfrentar todos aqueles que se colocam na sua frente.
Acompanhamos Bella em suas descobertas, suas mudanças e amadurecimento ao decorrer do filme, mas também todas as consequências das suas escolhas, que não são sempre bonitas ou gratuitas, buscar pelo próprio desejo também tem o seu preço, tem os seus riscos. Durante as 2 horas e pouco mais de filme, vemos homens o tempo inteiro na tentativa de cercar, aprisionar e tratar Bella como algum tipo de troféu, mas não esperem que isso seja aceito da forma mais branda.
Yorgos mostra mais uma vez que é um daqueles diretores que precisamos ficar de olho, acompanhando cada um de seus projetos e observando seu amadurecimento em cada filme. Aqui eu não encontrei um defeito para trazer, mas total empolgação de estar viva na mesma época em que alguém faz realmente arte no cinema. Momentos de risada alta, de estranhamento, de absurdo completo. É ficção científica misturada com surrealismo, resultando em um filme brilhante, que merece toda a ovação que vem recebendo. Convido-os para descobrirem junto com Bella a raiz dos seus próprios dilemas e até onde um desejo pode levar alguém.
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Psicóloga, apaixonada pela psicanálise e absolutamente obcecada por true crime, thrillers e máfia. Falo mais que a mulher da cobra e poderia viver facilmente apenas de livros, séries e filmes.