DiCaprio, De Niro e Gladstone brilham em novo filme de Martin Scorsese
Obs.: Esse texto pode conter leves spoilers
Estreia dia 19 de outubro nas salas de cinema o mais recente trabalho do aclamado diretor Martin Scorsese: Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon, 2023). O longa traz um elenco de estrelas para contar uma história real, baseado no livro de mesmo nome do jornalista americano David Grann.
No enredo, roteirizado pelo próprio Scorsese em parceria com Eric Roth, acompanhamos Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), que chega em Oklahoma depois de participar da 1ª Guerra Mundial, para viver nas terras do tio, William Hale (Robert de Niro), onde pretende arranjar um trabalho tranquilo – ele não pode fazer muito esforço por conta dos ferimentos de guerra – e, se tudo der certo, um casamento.
É nesse cenário que somos apresentados à Mollie (Lily Gladstone), uma nativa indígena que, assim como seus pares, enriqueceu por conta do petróleo encontrado em suas terras. Não demora muito, Mollie e Ernest se envolvem amorosamente e acabam se casando. Mas o medo rodeia a família de Mollie, que começa a morrer em assassinatos suspeitos, motivados, principalmente, pelo dinheiro que possuem.
O desprezo de uma nação pelo sofrimento de uma raça
Assim como a família de Mollie, tantos outros nativos têm suas vidas tiradas em meio a uma época em que as pessoas que deveriam cuidar da segurança de todos, ou eram inexistentes, ou faziam vista grossa para os crimes. Não todos os crimes, mas os cometidos, principalmente, contra a população nativa.
Por causa de uma crença de que o homem branco era o dono legítimo das terras americanas, os habitantes originais do Condado Osage foram massacrados pelos invasores brancos, gerando um verdadeiro genocídio que somou, segundo o livro de Grann, centenas de mortes, cinicamente negligenciadas pelas autoridades locais.
Lembra algo que você conhece?
Não obstante, ficava evidente o arranjo de casamentos de homens brancos com mulheres indígenas, na esperança de que esses homens herdassem suas terras e, junto delas, sua fortuna. Nesse sentido, a direção de Scorsese é primorosa e entrega um filme paradoxalmente bonito e angustiante.
É quase impossível não se encantar com a fotografia, hora delicada e pacífica, mostrando o horizonte esverdeado, hora escura e melancólica, retratando dor, medo e suplício. Sem contar a excelente trilha sonora, que nos ajuda bastante a enganar a percepção do tempo que passamos em frente à tela (quase três horas e meia). Apostaria dizer que esse é um dos melhores trabalhos do diretor, que soma uma quantidade imensa de obras-primas nos seus mais de 50 anos de carreira.
Lily Gladstone gigante
Não há como fugir do espetáculo mostrado por DiCaprio em seu trabalho corporal. Sua expressão facial com a mandíbula projetada para frente e sua boca em formato e “U” invertido imprimem tanto um homem carrancudo quanto simples. Algumas vezes tão cínico que não conseguimos perceber se ele está sendo genuíno ou se está fingindo ser néscio para passar por inocente. E, óbvio, a calma dissimulada de De Niro, na pele de William, sórdido, que finge amizade aos locais enquanto os manda matar pelas costas.
Mas, a mais grata surpresa, com certeza, é Mollie. Gladstone tem uma força, uma presença cênica potente, que cativa o expectador desde que ela abre a boca pela primeira vez e diz “Yes, sir”. Pacífica, mas não submissa. Complacente, mas não inferior. Há, na personagem, um trabalho corporal que a torna grande. Muito provavelmente porque ela é, para quem assiste, a alegoria que concentra o sofrimento vivido pelos Osage.
Particularmente, faço coro ao consultor linguístico Osage da obra, Cristopher Cote, que disse ao The Hollywood Reporter que a história se tornaria bem mais representativa se fosse contada pelo ponto de vista de Mollie. Assim, poderíamos ter um vislumbre do que realmente passaram e de como realmente se sentiram os verdadeiros protagonistas desse fatídico momento histórico.
No final das contas, mesmo em toda sua glória cinematográfica (inquestionável) “Assassinos da Lua das Flores” ainda é uma história contada do ponto de vista dos brancos. É um filme que conversa com os brancos. Que parece falar sobre a vida de um homem branco que chegou a uma terra estranha e participou de um momento sombrio da formação da sociedade norte-americana, quando, na verdade, essa é uma história sobre a tragédia dos povos originários da América. Não acredito ser esse um erro de direção. Mas, talvez, a opção possível, uma vez que a obra é, de fato, produzida, dirigida e estrelada por homens brancos.
Uma saída esperta ou um pouco de preguiça?
O único desconforto que senti, causado pelo tamanho imenso de “Assassinos”, foi o físico. É complicado ficar sentado mais de três horas em frente à tela, bebendo pouca água pelo receio de a bexiga te forçar a levantar em algum ponto importante da narrativa. Mas, fora isso, Martin Scorsese conseguiu a façanha de não tornar enfadonho um filme tão grande (o terror da geração TikTok). E é até bom lembrar que não estamos falando de um filme de ação, um musical, ou nenhum desses filmes de super-gente cheios de cenas “empolgantes” e animadas.
“Killers of The Flower Moon” é um drama pesadíssimo, com meia dúzia de cenas de morte chocantes e comportamentos asquerosos. Mesmo assim, consegue prender nossa atenção em toda sua trajetória, ao ponto de me deixar surpreso ao olhar pro relógio, no fim da sessão, e perceber que havia passado tanto tempo. Mas esse longo tempo pode ter sido, também, fator decisivo para escolha narrativa do final do filme.
Após o julgamento de quem pode ser considerado uma espécie de “vilão”, somos enfiados no meio de um programa de rádio de true crime, muito parecido com os podcasts que ouvimos hoje, mas, na verdade, uma reprodução de radionovela, bastante comum naquela época. Dessas em que os participantes simulam barulhos e caminhada e pessoas bebendo água.
E essa radionovela é quem nos conta os desfechos dos personagens, incluindo os momentos finais de suas vidas. Pareceu, para mim, uma certa mácula à forma como a história havia sido contada até então. O que pode causar a impressão de que foi melhor essa “solução curta” do que empurrar mais meia hora de cenas na audiência. Um defeito? Não consigo afirmar. Deixo, então pra que você mesmo faça essa avaliação. “Assassinos da Lua das Flores” vale muito a ida ao cinema (de bexiga vazia, por favor), assim como quase todos os filmes do diretor. Um grande filme, seja lá qual for o sentido que você dê a essa frase.
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Gay, Nerd, jornalista e podcaster. Chato o suficiente pra achar que pode se resumir em apenas quatro palavras. Fã de X-Men e especialista em Mulher-Maravilha. Oldschool – não usa máquina de escrever, mas bem que poderia. There’s only one queen, and that’s Madonna!