Depois de tanta desgraça domingo após domingo, o que mais poderíamos esperar do penúltimo episódio de The Last of Us (2023 -)? Definitivamente nada de bom, não é mesmo? De fato, se a expectativa era essa, novamente não saímos desapontados. When We Are In Need é o capítulo mais sombrio e denso da série até agora, com grande destaque para a atuação extremamente madura e sensível de Bella Ramsey.
Este texto contém spoilers. Continue lendo por sua conta em risco.
“E vi um novo Céu e uma nova Terra. Pois o primeiro Céu e a primeira Terra passaram. E ouvi uma voz do Céu que dizia: ‘Eis aqui, o tabernáculo de Deus, com os homens. E Deus limpará de seus olhos toda a lágrima e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor, pois a antiga ordem já passou”
(Apocalipse, 21)
Começamos com planos de uma paisagem castigada pelo inverno, embora este pareça muito pior do que o frio que encontramos anteriormente em Wyoming, mais violento, pode-se dizer. E por cima destas imagens, ouvimos a passagem bíblica supracitada. Somos introduzidos a um grupo de pessoas ouvindo a um homem enquanto este lê o livro sagrado. Seria esse resto de civilização pós – surto de infectados, o novo mundo a que a passagem se referiria? Se estas fossem as guerras, pestes e catástrofes profetizadas no livro, isso seria um sinal de que Jesus estaria voltando? Atrás do homem que lê há uma faixa escrito “Quando mais precisamos, Ele proverá”, muito pode-se tirar dessa pequena sequência, mas o que temos na superfície da sequência é que este que está de pé está pregando para os outros, numa espécie de culto. E é interrompido pelo choro de uma jovem adolescente. Ela questiona quando poderão enterrar o pai e um silêncio incômodo preenche o ambiente, “o chão está muito congelado”, responde o homem depois de uma troca de olhares com outro homem presente no recinto. Há algo além do que se vê ali, apenas um luto não justificaria aquele nível de tensão no ar.
Em um diálogo simples, mas eficiente, aprendemos que há seis meses aquela comunidade enfrenta dificuldades para sobreviver à escassez de recursos, e que o homem que estava pregando é uma espécie de líder, James (interpretado por Troy Baker, nada mais nada menos do que o dublador de Joel Miller nos jogos, fazendo uma ponta aqui como num agrado para os fãs da franquia) é o homem de quem David (Scott Shepard) suspeita da lealdade e a forma como ele o faz é direta, sincera e calma, mas nunca passiva. Este é David e é dessa forma que ele lida com as pessoas. Eles decidem pegar suas armas e saírem para caçar.
Cortamos para Ellie (Ramsey), ainda tentando cuidar de um Joel (Pedro Pascal) desacordado, aparentemente fraco demais até para comer e beber. Enfrentando ela mesma o problema de falta de comida, a menina decide pegar o rifle de Joel e sair para caçar. A diferença de tamanho é avassaladora, a situação toda é tão adversa que imediatamente o público sente que não vai ser um passeio simples, não há música, apenas os passos de Ellie na imensidão branca e muitas árvores. Mas, ela encontra, de fato, um animal para caçar e provavelmente como Joel ensinou, ela consegue acertar o cervo, que corre desesperado, sangrando pelo caminho.
Aqui acontece a primeira inversão da adaptação, nesse ponto do jogo nós somos a Ellie, e estamos sem Joel, não sabemos se ele vai sobreviver ou não, é um momento extremamente aterrorizante. Nós acertamos o tiro, daí precisamos seguir os rastros de sangue do animal, e quando o encontramos, somos surpreendidos por David, meio que refletindo a posição de caça e caçador, nos sentimos imediatamente ameaçados. Mas, aqui, a montagem nos faz esperar que estamos vendo o ponto de vista de Ellie, mas na verdade David e James encontraram o cervo primeiro e eles é que são surpreendidos por Ellie, que engrossa a voz e os ameaça de uma maneira incrivelmente convincente.
E é preciso ser dito que o que Bella Ramsey faz nesse episódio como um todo é muito impressionante, desde esse encontro em diante, a Ellie de Bella se distancia um pouco mais da Ellie dos jogos, e por favor não me entendam mal, a Ellie dos jogos mora no meu coração, mas que grande acerto da atriz e da série! Enquanto no game, Ellie é mais adorável e inocente, “Bellie” (a Ellie da Bella Ramsey), como vamos ouvir mais pra frente nessa mesma história, tem um coração violento, um instinto de sobrevivência e uma tenacidade que a tornam, a meu ver, uma personagem que dialoga muito mais com a Ellie que encontramos em The Last of Us II, como a sequência já está confirmada, é uma construção que com certeza torna o futuro da série cada vez mais instigante. Mas, estou divagando.
Diante do impasse de ambos precisarem do cervo para si, David oferece trocar a caça por alguma coisa, Ellie rapidamente aproveita a oportunidade e procura por medicamentos que possam ajudar em seu outro desafio, que é salvar Joel. O interessante nessa sequência é que David não trata Ellie com cinismo ou presunção, pelo contrário, ele acata tudo o que ela diz, isso inclusive soa muito estranho para James, que não tem outra alternativa a não ser obedecer as ordens de seu líder e voltar para a vila, em busca dos remédios que Ellie exigiu em troca de metade do animal morto. Mas, a dinâmica que se estabelece aqui, aliás com muita maestria também pela atuação de Scott Shepard, é um jogo de poder, Ellie precisa provar para ele e para si mesma que é mais do que aparenta ser, uma garotinha indefesa e David quer ganhar a confiança dela, com muita calma, nunca se demonstrando ameaçador, nunca levantando a voz. Ele se abre com ela mesmo Ellie negando sequer dizer seu nome para ele. Até que, para provar seu ponto de vista, ele conta uma história e descobrimos que o homem que Joel matou no episódio anterior, que lhe esfaqueou, fazia parte daquela comunidade e, por acaso, era o pai que a menina da cena de abertura queria enterrar. Porém, mesmo depois disso, mesmo depois que James retorna com os remédios, ensaiando uma emboscada, David continua tentando proteger Ellie e a deixa ir embora.
De volta ao Joel moribundo, Ellie aplica o remédio do jeito que consegue e a ela não resta muito mais do que esperar que dê certo. Na vila de David, fica subtendido que Alec, o homem que foi morto por Joel, está servindo, secretamente, de janta para o resto da comunidade quando o autodeclarado padre e James retornam carregando o cervo que Ellie acertou na floresta. Há uma tensão no ar, e na hora pode-se pensar que é por conta justamente da comida, mas na verdade estão todos tensos porque o assassino de Alec está por perto e as pessoas desejam justiça. David anuncia que vão à procura dele no dia seguinte, seguindo os rastros de Ellie. Novamente, a filha de Alec se manifesta, ela deseja a morte dos dois e David nos demonstra seu poder de controle e moral em cima daquelas pessoas, pois ele a castiga diante da mãe da garota, que nada faz. E reforça que ela precisa respeitar o pai quando ele está falando, porque ela ainda tem um, apesar de sentir o contrário. Uma pincelada da verdadeira natureza de David, que estava escondido debaixo de tanta tranquilidade anteriormente.
No dia seguinte, Ellie percebe a aproximação da ameaça e tenta acordar Joel a todo custo, sem muito sucesso. Ela deixa uma faca com ele e avisa que vai tentar despistar os outros para lhe dar mais chances de sobreviver e ela quase consegue, mas seu cavalo é acertado por James, ela cai e fica inconsciente. Mesmo diante da óbvia objeção dos outros, David não permite que a matem e bate o martelo para que encontrem e saciem sua sede de vingança com Joel, pois Ellie voltará para a vila com eles.
Joel, munido de toda a força que lhe resta, consegue não só levantar, como derrubar e torturar os homens que lhe perseguiam, trazendo de volta sua face mais brutal até ali, a face que todos ouvimos falar mas ainda não tínhamos visto até aqui. Assim ele descobre a localização da comunidade, que na verdade é um resort, e parte para resgatar Ellie. Provavelmente a única coisa que ainda o mantém em pé é a possibilidade de Ellie ainda estar correndo perigo.
E não é pouco perigo. Acordamos numa gaiola para descobrir que além de manipulador e canibal, David é também o ser humano mais desprezível que já pisou nessa Terra ou na nova prevista pelo Apocalipse da Bíblia. Ele realmente não quer ter que matar Ellie, sequer quer usá-la para alimentar seu povo, ele usa o medo de Ellie de acabar sozinha e ter que sobreviver sem ninguém para lhe oferecer um recomeço, ele a vê como uma igual e a quer ao seu lado, da pior maneira possível. Mesmo assim, senti que o tratamento da série para esse tipo específico de ameaça foi sutil o suficiente para deixar claro, sem deixar gráfico, a tensão está ali, sem pesar demais a mão. Fingindo estar sendo ludibriada, Ellie o ataca, a situação escala compreensivelmente rápido e o destino de Ellie é traçado, não há mais um recomeço nas promessas de David.
Em montagem paralela temos uma nova inversão da adaptação, Joel está à procura dela, encontra sua mochila, encontra o cavalo baleado por James e encontra também os corpos que David e os outros estavam usando como mantimentos, o que obviamente o desespera. Ellie é perseguida por David até o que parece ser um antigo restaurante, uma dessas churrascarias tradicionais e os dois acabam presos ali, num jogo de gato e rato, presa e predador. O conhecimento prévio do jogo para quem jogou, claro, nos faz esperar por uma coisa, mas não somente isso. As narrativas convencionais também nos fazem esperar que Joel apareça a qualquer momento e a salve daquela situação, principalmente pelo modo como as cenas foram montadas, de modo a construir uma expectativa e quebrá-la em seguida. Porque não é o que acontece aqui.
Na disputa de poderes entre David e Ellie, ela está sozinha e salva a si mesma, não há ninguém para impedi-la ou ampará-la, ela mesma encontra a saída e só então é que Joel a encontra e aqui, apesar de falhar novamente na missão de protegê-la, Joel finalmente se permite agir de maneira paternal para com ela, ele não a salvou, mas ele a acolheu e a fez sentir-se segura novamente. Um simples “baby girl” define finalmente o que já vinha se desenhando entre eles até aqui. Há um laço que os mantém unidos, forte o bastante para não desistirem um do outro. No universo de The Last of Us amor e violência são sempre colocados lado a lado, como faces da mesma moeda, quase sempre seguidos de tragédia, nas cartas e relatos que encontramos na gameplay, nos personagens que conhecemos na série. Amor esse que, ironicamente, segue o mesmo caminho defendido por David em suas falas, será que amar é também fazer absolutamente tudo que for preciso para proteger quem se ama, mesmo que isso signifique tomar atitudes extremas? Não sei se a resposta está no último episódio, de domingo agora, dia 12, mas sei que quero muito descobrir. Nos vemos no final da jornada.
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Roteirista e podcaster bacharel em Cinema e Audiovisual. Ex-potterhead. Escuta música triste pra ficar feliz e se empolga quando fala de The Last of Us ou Adventure Time. É viciado em convencer as pessoas a assistirem One Piece, apreciador dos bons clássicos da Sessão da Tarde e do Cinema em Casa e, acima de tudo, um Goonie genuíno.