O que faz de nós humanos?
Quem assistiu Ilha das Flores (1989) sabe que, biologicamente, o que nos distingue de outros mamíferos é um teleincéfalo altamente desenvolvido e um polegar opositor. Mas e se pensarmos na possibilidade de que existam outros seres racionais como nós no Universo (não podemos descartar essa possibilidade), sejam extraterrestres, reptilianos, mutantes ou até deuses? O que nos diferenciaria deles, não só biologicamente, como essencialmente? Pensar a nossa insignificância dentro de um cenário de grandiosidade conhecido ou desconhecido é algo que fazemos desde sempre, seja pelos parâmetros científicos, seja através de nossas crenças e religiões, é basicamente uma das questões fundamentais da filosofia e de qualquer civilização humana.
Tudo bem. É um clichê. Mas lembrar sobre a imperfeição humana e a beleza disso, em minha opinião, nunca é demais.
Eternos (Eternals, 2021) inaugura um outro nível de fantasia cósmica no Universo Marvel (já podemos remover o Cinematográfico?), algo como sua própria Teogonia ou Gênesis, nos revelando, após 25 filmes e uma saga inteira, sua cosmogonia, ou seja, a origem daquele universo. A proposta é ambiciosa, mesmo vindo da franquia onde já tivemos desde filmes de assalto à aventuras intergalácticas, passando por filmes de espionagem e um panteão extraterrestre de divindades mitológicas vikings, tudo dentro de uma mesma trama extremamente bem costurada. Além do mais seria mais uma vez apostar em um grupo de personagens quase que completamente desconhecido do grande público, mas que servirão como base de muitas coisas que vimos em todos os filmes anteriores e tantas outras que ainda virão pela frente. Para quem acompanha de perto o andar dessa carruagem é o primeiro grande passo de uma nova jornada após uma outra já muito bem sucedida e estabelecida.
Como se não bastasse todos esses riscos o estúdio ainda decide escolher uma diretora que foge completamente do padrão dos outros filmes da franquia. Acostumada a filmes independentes, com baixo orçamento e não-atores, Chloé Zhao é o que poderíamos chamar de uma cineasta autora, algo que já foi mais comum em Hollywood, mas que hoje habita geralmente fora dos grandes (enormes) estúdios. Zhao ficou mais conhecida no início deste ano por levar o seu fabuloso Nomadland (2020) a concorrer em seis categorias no Oscar e vencer em três delas, incluindo melhor filme e melhor direção. É um grande feito levando-se em consideração o insistente conservadorismo da Academia, que a diretora é de origem chinesa e seu filme é quase um documentário contemplativo sobre assuntos delicados para a sociedade estadunidense contemporânea. O fato é que qualquer pessoa que conhecia a diretora e sua filmografia naturalmente deve ter ficado espantada com sua escalação para encabeçar um novo filme da Marvel, e é um espanto completamente justificado.
No meu caso, o espanto veio seguido de curiosidade, e depois de uma forte empolgação. Eu sempre admirei abertamente o desenvolvimento do Universo Marvel, muito mais do que admiro muitos dos filmes da franquia individualmente. E por mais que já seja batido falar sobre uma “fórmula Marvel” é preciso admitir que ela existe sim, mesmo que não seja tão simples assim de explicá-la. Logo, minha expectativa por algo novo, dentro dos limites de uma franquia gigantesca e bilionária, era pujante.
E é isto. Minhas expectativas não foram alcançadas.
Mas nem por isso posso afirmar que me decepcionei. Muito pelo contrário. Eternos pode não ser algo completamente novo dentro do universo Marvel, mas certamente podemos sentir o sopro do cinema de Chloé Zhao nele, e só isso já é o bastante para nos mantermos fixos na frente da tela por um bom tempo, muitas vezes – caso não fossem as referências diretas – esquecendo mesmo de que se trata de um filme dentro de uma grande franquia. Isso é bom? Ao meu ver, mesmo se tratando de um universo único compartilhado (ou uma continuação ou um spin-off, que seja), todo filme deve se bastar independentemente. Talvez o desafio não tenha sido exatamente apresentar conceitos novos, outros filmes da Marvel já fizeram isso de forma bastante bem sucedida e lúcida, mas sim desenvolvê-los junto com mais dez personagens, cada um com personalidade e complexidade própria, e isso foi feito sem rodeios, de forma simples e clara (mas também com a ajuda de um longo letreiro na abertura, mas quem nunca?).
O roteiro não se demora em demonstrar o laço fraternal entre o grupo, e logo somos convencidos de que estamos vendo uma família trabalhando em uma missão celeste para proteger a humanidade, e para quem não esperava boas cenas de ação tendo em vista os trabalhos anteriores da diretora, pude logo ficar tranquilo ao ver a desenvoltura da cineasta para orquestrar batalhas extraordinárias, com um uso orgânico e inteligente de cada um dos superpoderes diferentes dos personagens ao enfrentar os monstruosos Deviantes.
Algo que já chamava atenção mesmo antes, na divulgação do filme, era a variedade de representatividade entre os dez Eternos, ainda mais se pensarmos que representações divinas na ficção são em geral homens e/ou brancos. Mas é admirável como Zhao consegue naturalizar essas representações, sem em nenhum momento nos deixar questionar ou lançar dúvida sobre a diversidade daqueles seres. Além do mais, por mais que tenhamos sim o foco do protagonismo em um ou dois personagens do grupo, podemos conhecer de forma bastante aprofundada cada um deles, suas diferenças de caráter, de personalidade, seus medos e seus desejos, e tudo isso é utilizado com objetividade dentro da narrativa do filme. E é preciso destacar a habilidade de direção e roteiro ao ter no elenco estrelas veteranas como Angelina Jolie e Salma Hayek e não deixá-las ganhar espaço exagerado na tela em frente a nomes menos conhecidos do público em geral ou novatos talentosos. E se as boas cenas de ação foram surpreendentes, o filme também foi muito feliz em seu aspecto cômico, se aproveitando, claro, especialmente da personalidade de alguns dos Eternos e das relações do grupo entre si, mas não somente.
Eternos mostra a versatilidade do Universo Marvel, mesmo dentro dos parâmetros que já tanto conhecemos desta franquia, sem perder a singeleza do espírito destes filmes, uma mensagem de humanidade em uma história com criaturas divinas como protagonistas. A esperança na imperfeição dos seres humanos, mesmo que não haja inocência em conhecer sua crueldade para consigo mesmos, seu destino autodestrutivo. É um épico genuíno que demonstra a imensidão de novas possibilidades que veremos pela frente nesta franquia, mas que não esquece de sua responsabilidade e do que ela representa para seus fãs.
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Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.