Missa da Meia-Noite – E as pessoas que nunca leram Bram Stoker

AVISO – Esse artigo contém severos spoilers.

Não precisa ser fã de filmes de terror para ter ouvido falar em vampiros. Você, certamente, já foi apresentado a eles de várias maneiras: desde o sinistro Drácula de Bram Stoker (Dracula, 1992), que adapta o livro onde a história do conde sugador de sangue foi contada pela primeira vez, passando pelos vampiros modernos de Blade: O Caçador de Vampiros (Blade, 1998), que usavam roupas de motoqueiros e protetor solar “fator 3.000” para poderem apreciar o pôr do sol à beira-mar; até a simpática e divertida família de Hotel Transilvânia (Hotel Transylvania, 2013) . Isso para dizer o mínimo.

Escrita em 1897, a obra já foi absorvida pela cultura pop e adaptada tantas vezes que talvez a única maneira inovadora possível de se fazer isso de novo seria contar uma história do ponto de vista de quem nunca ouvi falar em tal mito. As pessoas da Ilha Crockett, por exemplo, se depararam com algo nunca visto antes. Bom, pelo menos por eles.

Missa da Meia-Noite (Midnight Mass, 2021) é uma minissérie em sete episódios da gigante Netflix, que estreou no último 24 de setembro. Criada por Mike Flanagan, que você deve conhecer por Doutor Sono (Doctor Sleep, 2019) e Hush: A Morte Ouve (Hush, 2016), a série adapta a história do livro fictício, homônimo, escrito pela protagonista surda do seu filme de 2016 – interpretada pela atriz Kate Siegel, esposa do autor, que também estrela “Missa”.

Aqui, somos apresentados à pequena ilha de Crockett, povoada por uma centena de pessoas que vivem da pesca local. Uma cidade com ares de anos 1980, com televisores de tubo e aparelhos de som que tocam vinis. É um pouco complicado definir em que época a história se passa, até que os personagens apareçam segurando smartphones, quando deduzimos que estamos na atualidade. Como em toda cidade pequena, a comunidade também possui uma igreja onde os fiéis se reúnem aos domingos. Há muito pouco o que fazer e as pessoas gastam muito do seu tempo vigiando a vida dos vizinhos. Todos se conhecem, há apenas uma escola e uma médica. Qualquer coisa um pouco mais complicada tem que ser resolvida “no continente”, como eles mesmos reforçam vez por outra.

Os problemas apresentados na série são muito verossímeis. Os personagens debatem temas como alcoolismo, maternidade solo, fanatismo religioso, xenofobia, ambientalismo e até a destruição de pequenas economias causadas por grandes empresas. Há também um debate severo sobre fé – que eu considero muito bem colocado. Não fosse uma série de terror, seria, certamente, uma ótima série dramática.

Já a parte mais “sinistra”, solo onde o diretor parece querer se especializar, nos primeiros capítulos, fica a cargo de umas pequenas aparições de um vulto noturno que ronda a comunidade com olhos que brilham no escuro, sempre aparecendo de relance ao final de cada episódio, nos fazendo lembrar qual o verdadeiro teor do programa que estamos assistindo. Isso e o mistério que envolve o suposto desaparecimento do padre da paróquia, um (bastante) idoso que saiu em uma viagem religiosa e não retornou à cidade, mandando um substituto.

Já pela metade da história (o que parece muito tempo, uma vez que a série tem apenas sete partes) o mistério acaba: o tal “substituto” revela em confissão – ao público, como se ele falasse em voz alta com Deus – que ele é o próprio padre rejuvenescido pela mordida de um vampiro que o atacou quando ele se perdeu em uma tempestade de areia num deserto de Israel (ou algum lugar da chamada “Terra Santa”, que ele visitava na tal viagem). Muito prudente de sua parte, ele levou o tal vampiro até a ilha, dentro de um enorme baú, achando que ele fosse, vejam só vocês, um anjo enviado por Deus para dar-lhe a juventude eterna, numa oportunidade de continuar perpetuando a palavra cristã.

Muito embora o padre estivesse bastante atordoado pela sua idade avançada e saúde debilitada (ele já não lembrava direito de nada, mal podia caminhar e estava sempre se perdendo), já me custou acreditar que, ao vislumbrar uma criatura com aparência evidentemente demoníaca, com olhos que brilham e enormes asas de morcego (tendo em vista que esse tipo de representação “satânica” é invenção do próprio cristianismo) ele a tivesse confundido com uma figura celestial. Mas, acessei minha suspensão de descrença e dei esse desconto, afinal, o padre estava confuso, caminhava há horas debaixo de sol forte, enfrentou uma tempestade de areia e seu juízo já não era tão bom. Passou.

O mais surpreendente, para mim, como expectador, foi quando, um episódio adiante, o protagonista da história foi atacado pela mesma entidade, teve seu sangue sugado e, ao acordar da manhã seguinte, curado e sedento por morder um pescoço, teve uma conversa de horas seguidas com o padre da cidade para que ele lhe explicasse o que foi que o atacou. Eu pensei: “Moço! Sério? Vocês nunca ouviram falar de vampiros? Ninguém sabe o que é um vampiro nessa cidade!?” E foi nesse ponto que a série perdeu toda a sua verossimilhança.

Daí para frente, tudo o mais é deixar rolar e esperar para ver onde o assunto vai chegar. O ápice, ao menos para mim, foi ver a médica da cidade tentando explicar cientificamente porque o sangue “contaminado” das pessoas da cidade – sim, o padre dá sangue de vampiro para todos beberem durante a comunhão, na missa – entrava em autocombustão ao contato com o sol e sobre uma condição que algumas pessoas albinas tinham (oi?). Fica muito longe da realidade imaginar uma sociedade moderna, com pessoas que têm pleno acesso à internet e à literatura, onde ninguém sabe o que é um vampiro. E é assim que as pessoas de Crockett têm que lidar com a situação: como uma coisa completamente desconhecida.

A tensão criada nos dois últimos episódios é, de fato, excelente. O fanatismo religioso misturado à perseguição dos fiéis aos “hereges”, que não aceitam “serem salvos” pelo tal “anjo”, cria uma atmosfera digna do que se propõe o diretor: um clássico filme de terror – destaque para a personagem Bev Keane, vivida pela atriz Samantha Sloyan. Talvez fosse uma proposta mais bem trabalhada se fosse assim desde o início. Mas todo o apreço que criamos pelas histórias dos personagens com os temas importantes sobre os quais eles conversavam se perde quando o teor do programa esquece o drama para ser apenas terror. Ou seja: nem era um bom terror quando focava, em demasia, no drama; nem foi bom drama quando esqueceu de tudo para ser nada mais que terror. Não foi bem dosado, nem bem intercalado. E passou longe de ser crível. É provável que tudo se explique por ter sido uma ideia que o autor teve em sua adolescência, como confessou em entrevista ao USA Today.

Bom, talvez fosse muito mais prudente – e proveitoso – focar apenas nos dramas dos personagens: reais, sólidos, necessários. Ou apenas no terror de entretenimento mesmo: tenso, sanguinário, subversivo e clássico ao tratar de religiosidade. Provavelmente, como na maioria dos casos, embora fictício, “o livro deva ser melhor que o filme.”


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