A primeira vez que vi Alguém Avisa? (Happiest Season, 2020), em novembro de 2020, não consegui me conter de raiva e tristeza. Eu era uma dessas pessoas que jurava que ia poder ver uma comédia mamão com açúcar, um filminho de natal daqueles milhares que sempre tem de casais héteros, só que agora com duas mulheres lésbicas. Teria adorado se esse fosse o caso, a gente vem precisando de coisas simples. É muito importante que a gente tenha peças assim, sejam filmes, livros ou qualquer outro tipo de mídia, que apenas retratem a comunidade LGBTQ+ fazendo coisas simples, simplesmente vivendo. Nós temos tantos outros tipos de histórias que acontecem em nossas vidas e ainda assim o tema “sair do armário” continua sendo recorrente. O que é compreensível, de certa forma, são tantos os diferentes cenários que podem acontecer ao se assumir aos parentes.
Porém, imagine o quão igualmente significativa seria a história de uma jovem desajustada que aceita o desafio de sair com a garota rebelde da escola que não quer namorar ninguém, para que um de seus amigos pudesse sair com a irmã dela, mas no fim as duas acabam se apaixonando; ou a história de duas garotas que se conheceram no dia 15 de julho e se reencontram todo os anos nessa mesma data, por exemplo. Histórias que não mencionassem e girassem em torno da mesma temática de sair do armário. É esse tipo de normalização que procuro tanto e que espero que possa acontecer mais daqui pra frente. E é também um desses motivos que me entristece ao assistir Happiest Season.
Os outros motivos, porém, não são desconexos ao primeiro, uma vez que temos o casal Abby (Kristen Stewart) e Harper (Mackenzie Davis): Harper, que não se assumiu gay para sua família, convida Abby para passar o natal com ela na casa de seus pais. Essa é a temática do filme, que nem é um problema em si, mas sim como essa temática é retratada. Para começar, Harper é uma grande mentirosa. Ela só conta a Abby que não se assumiu quando as duas já estão chegando à casa. Se não fosse por esse acontecimento, Abby talvez nunca soubesse que a história que ela contou sobre se assumir e ficar tudo bem era, na verdade, uma mentira. Essa nem é, de longe, a única mentira que Harper conta. Seu personagem é envolto de mentiras desde a adolescência: ela mentiu quando os colegas de escola descobriram que ela trocava cartas com sua ex Riley (Aubrey Plaza), mentiu quando terminou com seu ex Liam, e mentiu ao contar essas histórias para Abby, que é constantemente pega de surpresa por esses fatos, os quais ela não tinha conhecimento. E aqui eu gostaria de deixar claro que o ato de omitir também pode ser considerado mentir.
Todas essas mentiras de Harper são a causa do sofrimento de Abby ao longo do filme (e a bixinha sofre tanto!…), mas não são a única. Abby é constantemente humilhada de diversas maneiras, e aqui temos um ponto importantíssimo, uma vez que o filme ora se trata de uma comédia romântica, ora de um drama/romance. Mas onde está a comédia, senão intrinsecamente ligado à humilhação de Abby? São tantos (ou talvez todos) os cenários em que ela está em uma posição extremamente delicada, e ainda sofrendo. Eu, por outro lado, absolutamente não consigo ver o filme como uma comédia, por mais que tentem me vendê-lo dessa forma. Para mim, e acredito que para outras pessoas LGBTQ+ também deva ser, não é nada engraçado ver outra pessoa LGBTQ+ sofrendo da forma que Abby sofre, ou de qualquer outra forma. Isso me tomou completamente a ponto do filme se tornar doloroso de se assistir. E é uma questão importante, porque é uma visão continuamente vendida junto à temática sair do armário. Uma compra casada extremamente comum. Se você vai contar uma história sobre alguém gay, ela precisa ser sobre se assumir e precisa ser penosa, senão não vende.
Ainda que no fim tudo acabe bem, essa felicidade não compensa a dor. O discurso de John (Dan Levy) para Abby é completamente compreensível e correto, mas não justifica toda a angústia sentida, uma vez que toda a humilhação de Abby poderia ter sido facilmente evitada desde o início, se Harper não tivesse mentido tanto. E mesmo que sejam Kristen Stewart e Mackenzie Davis juntas, nada compensa a dor.
Eu almejo um futuro em que a mídia LGBTQ+ não trate mais sobre pessoas gays e/ou trans sofrendo e que, quando trate, que seja com respeito. Mas de nada adianta que eu, ou quem mais se indigne com esse tipo de produto, espere recebê-lo bem sentado. É preciso que a gente fale e discuta sobre como a gente quer se ver, e mais importante, que a gente faça esse tipo de conteúdo, seja desenhando, pintando, escrevendo, fazendo podcasts, contando histórias que são nossas de verdade, e apoiando quem as conte com o respeito que a gente merece. Enfim, que seja como cada um de nós souber fazer.
Marina Porto é estudante de animação, som, design, atualmente cursa Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Ceará e é bolsista do Arte na Biblioteca. Em 2019, participou do 18° Festival NOIA de Audiovisual Universitário como júri.
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