Filmes sobre o período que se convencionou chamar, equivocadamente, de Pré-História são bem complicados. Eu poderia escrever um texto inteiro só argumentando sobre como utilizar esse termo e dizer que trata sobre o período anterior à “invenção” da escrita é errôneo de várias formas, mas vou simplificar dizendo que existem agrupamentos de seres humanos ainda hoje que se valem da oralidade para se comunicar em detrimento de qualquer tipo de escrita, ou seja, este raciocínio é derivado de uma maneira eurocêntrica de pensar a História, que infelizmente é a maneira que ainda permanece nos livros didáticos de História. Mas voltando… Esse assunto é complicado de tratar (não só em cinema, mas em qualquer outra mídia), exatamente porque é um tempo em que temos um número muitíssimo pequeno de informações sobre o modo de vida dos humanos, e a maior parte dessas poucas informações vem de análises de vestígios como fósseis (seja de seres vivos ou de artefatos), inscrições e pinturas rupestres, etc. Mas, ao mesmo tempo, exatamente pela falta de informações, acaba por ser um período em que criamos um imaginário fantasioso muito rico (Os Flintstones e os quadrinhos do Piteco ajudaram bastante nisso), o que pode ser ruim por um lado, mas ótimo por outro, por proporcionar uma liberdade imensa de se ficcionalizar em cima dele de várias formas.
E agora temos esse Alfa (Alpha, 2018), com uma premissa pelo menos interessante. Keda (Kodi Smit-McPhee) é o filho de um chefe de uma tribo que vive na Europa durante a última Era Glacial e é escolhido para fazer parte do grupo de caça responsável por conseguir comida para que possam sobreviver durante o duro e mortal inverno. Durante a caçada Keda é gravemente ferido e o grupo se vê obrigado a abandoná-lo quase sem vida. Acordando ainda ferido e percebendo que havia sido deixado para trás, o garoto se mostra muito habilidoso em se recuperar dos ferimentos e se manter vivo durante um tempo, mas logo é perseguido por um grupo de lobos e na fuga consegue acertar um dos animais antes de subir em uma árvore e salvar-se. Quando o grupo de lobos abandona o membro ferido e incapaz de continuar Keda logo cria uma empatia pela clara semelhança do que havia acontecido consigo pouco tempo atrás. Assim, a ideia do longa é apresentar uma ideia bastante romanceada de como começou a relação entre seres humanos e lobos, que depois de domesticados se transformariam nos cachorros que conhecemos hoje.
Obviamente que o diretor Albert Hughes – de O Livro de Eli (The Book of Eli, 2010) – e o roteirista estreante Daniele Sebastian Wiedenhaupt, utilizaram toda a liberdade que o tema permite para tentarem tornar esta história o mais comovente possível, já que o mais provável que tenha acontecido seria que os lobos tenham visto nos agrupamentos humanos uma facilidade de conseguirem alimentos nos restos deixados após suas refeições, e com o tempo os mais dóceis foram melhor aceitos e mais alimentados pelos homens, que logo encontraram nos animais várias utilidades como caçadores, na proteção de outros predadores, e depois no pastoreio.
Infelizmente os realizadores não tiveram sucesso nesta tentativa de criar uma história comovente, talvez exatamente por forçarem demais esta comoção. O filme parece a todo momento desvalorizar a capacidade intelectual e sentimental do espectador, com pistas claras demais, na primeira metade do filme, de como o garoto Keda e seu amigo (que ganha o nome de Alfa, claro) conseguirão sobreviver às forças da natureza que poderiam os impedir de voltar para seu grupo. E é principalmente também na primeira metade que vários dos “ensinamentos” do filme são passados especialmente nas falas quase “de palestrante motivacional” do pai de Keda, Tau (Jóhannes Haukur Jóhannesson) ou na narração também desnecessária que abre o filme (na voz do narrador oficial de Hollywood, Morgan Freeman) e que retorna apenas quando este se encerra, num belo exemplo de como não utilizar narração numa história. Mas o pior é o excesso de diálogos até mesmo na segunda metade, quando o único animal falante em tela é o garoto (e assistir o filme dublado foi, para mim, ainda mais doloroso. Pode se prepara que será difícil encontrar uma cópia legendada se você assim preferir).
No entanto, me parece que o público que o filme deseja atingir é aquele que se interessa exatamente por este tipo de filme com uma comoção leve e uma pegada motivacional clara, e neste caso ele certamente será bem sucedido (pelo menos economicamente falando). E temos uma fotografia, do experiente Martin Gschlacht, que impacta pela beleza da coloração, uma mistura de tons azulados e avermelhados bem comum, e é realmente bonita em alguns planos que utiliza um contraluz, mas não passa muito disso, uma beleza gratuita. O que me entristece é que se perdeu mais uma boa oportunidade de se trabalhar esse período dos primórdios da humanidade de forma mais cuidadosa.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.