Você – A desmistificação do romantismo

Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente, eu sei que vou te amar
 
E cada verso meu será
Pra te dizer que eu sei que vou te amar
Por toda minha vida
A música Eu Sei Que Vou Te Amar, composta por Vinícius de Morais e Tom Jobim, é linda, poética e capaz de estremecer o coração daqueles que já tiveram amores avassaladores e eternos enquanto duraram. A ideia de amor romântico, que aquece os sentimentos no ocidente desde que se popularizou com William Shakespeare em Romeu e Julieta, deu ao amor a sensação mais nobre e ousada de completude, eternidade e magia. As histórias infantis também seguem essa linha de raciocínio quando envolvem uma princesa frágil em busca de um príncipe que a dará a felicidade eterna. Triste seria se o pano de fundo que envolve todo esse amor pudesse desembocar numa série de relacionamentos abusivos e egoístas. E é aqui que a série Você (You, 2018 -), da Netflix, traz reflexões e alertas tanto para os homens como para mulheres que seguem suas vidas à espera do conto de fadas.
A história envolve Joe Goldberg (Penn Badgley), gerente de uma singela livraria em East Village, Nova York, e Guinevere Beck (Elizabeth Lail), uma jovem do interior que enfrenta as dificuldades da “cidade grande” para ascender na carreira e ser, um dia, uma escritora famosa. Joe, desde a primeira visita que Beck fez a sua livraria, se vê apaixonado e convicto de que aquela moça é, sem dúvida, a mulher da sua vida. Para satisfazer suas certezas, e com a plena convicção de que era o homem certo para fazê-la feliz – tal como um príncipe – ele trama todas as formas de conhecê- la, aproximar-se, admirá-la e protegê-la. Mesmo que os meios usados para atingir esse fim sejam extremamente contestáveis.
Joe teve uma infância conturbada. Criado pelo dono da livraria onde trabalha atualmente, ele teve que aprender que as formas de amar alguém podem ser nada convencionais e que tudo vale para proteger quem se ama. Sob essa premissa ele embarca nos relacionamentos “de cabeça”, se doa completamente e arrisca sua vida pela do outro – se você consegue chegar aqui admirando o personagem e sonhando em ser como ele, sorria, você está sendo enganado. Há uma linha tênue entre a sanidade e a loucura, o amor e a abusividade que faz transparecer a toxicidade que envolve os relacionamentos atuais – e não me restrinjo só aos amorosos.
Guinevere teve sérios problemas com os pais, também na infância, e é perceptível como isso a moldou enquanto mulher. Seu pai separou-se de sua mãe quando ainda era jovem e foi, com outra mulher, ter uma vida perfeita e uma família digna de filme. Após essa experiência Beck acaba por embarcar em relacionamentos abusivos que nada acrescentam a sua vida. Ela sofre, mas como entusiasta da vida romântica sonha com um cara que fará diferente, salvando-a de tudo aquilo.
As amigas de Beck tem concepções diferentes do que seria o homem ideal. Sua amiga mais próxima, Peach Salinger (Shay Mitchell), acredita que o homem que vale a pena é aquele que pode ceder a mulher todos os luxos que uma conta bancária com vários zeros pode trazer. A proximidade que Peach pode ter com a mãe ou mesmo amiga na vida real de várias mulheres não é mera coincidência.
A magia que contorna a história faz com que não haja vilões ou mocinhos. É possível se identificar e ter repulsa tanto por Guinevere como por Goldberg em vários momentos da série. A cada vez que se aproxima o fim, seja do episódio, seja da série, fica mais claro o erro de odiar ou adorar qualquer dos dois personagens. A trama é completamente envolvente e a série é digna daquelas maratonas onde só se para de ver quando há uma emergência – das mais graves possíveis.
Ao fim de tudo – que se resume a primeira temporada e a ansiosa espera pela segunda que, segundo a Netflix, virá “em breve” – restam as reflexões sobre onde os contos de fada nos levaram(?) e a importância do “desprincesamento”, para ambos os sexos, como forma de desamarra para a eterna procura da metade da laranja, do amor eterno e de um ser que suprirá todas as nossas necessidades e nos fará eternamente felizes.
A verdade é que o amor incondicional e sem medida de Vinícius de Morais e Tom Jobim, como tudo na vida, tem um custo e nem sempre o resultado dessa equação vai ser um “felizes para sempre”.
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Jamille Bernardes
Estudante de Direito, professora de redação, negra e feminista. Ama ficção-científica e é completamente viciada em jornais. Prefere água à qualquer outro tipo de bebida e não dispensa jamais uma pizza de calabresa da promoção.