Quando você sabe que o filme foi vencedor da Palma D’Ouro em 2018, o maior prêmio do Festival de Cannes, fica difícil não criar expectativas e impressões em torno dele. Normalmente um prêmio como esse faz com que as pessoas imaginem que o filme lhes surpreenderá de alguma forma e já entrar na sala de cinema ávido por algo que pode não acontecer é a receita certa da decepção. Pensando nisso, de Assunto de Família (Manbiki Kazoku, 2018), novo filme de Hirokazu Kore-eda, eu fiz de tudo para não saber muito mais do que uma simples sinopse. A decisão se mostrou acertada, sobretudo porque se apaixonar inesperadamente é muito melhor do que ter a expectativa atendida ou superada. Essa resenha talvez não lhe valha de nada, será sim tendenciosa, porque fui fisgada desde a cena de abertura do filme.
Na trama, acompanhamos o cotidiano de uma família humilde que tem sua rotina de pequenos furtos balançada quando Osamu (Lily Franky) e o pequeno Shota (Jyo Kairi) encontram com uma garotinha aparentemente abandonada. Osamu a leva para casa sem pestanejar, mesmo o resto da família, a matriarca, a esposa e a filha mais velha, não concordando de imediato.
O que salta aos olhos em Assunto de Família são os pequenos detalhes. A extrema sutileza com que Kore-eda trabalha todas as questões que entram dentro dessa história. Relações familiares, relacionamentos abusivos, abandono, afeto, amor. É de uma sensibilidade impressionante o modo como os personagens, complexos e desajustados, são humanizados, cativando o espectador antes mesmo que ele perceba. É muito difícil não prezar pelos laços que os personagens têm entre si, não torcer por eles, não se apaixonar por eles, independente do que é certo ou errado. Várias vezes me peguei tentando pesar o que deveria acontecer com cada um deles, sem conseguir decidir de fato.
Mas, não só isso, a maneira como a atmosfera do filme é montada também é de um primor incrível. A câmera parada que nos dá tempo para absorver todas as minúcias das cenas, os enquadramentos fechados e a iluminação aconchegante da apertada casa em que eles se espremem para sobreviver. O ritmo, que é quase contemplativo, mas nunca entediante, já que estamos sempre tendo aprofundamento desses personagens, e os personagens em si. Carentes de diferentes maneiras, famintos, necessitados em todos os significados que essa palavra possa ter e todos absolutamente carismáticos. Kore-eda fala muito e muito bem de formas surpreendentemente simples. De laranjas que remetem a sangue a crianças que não podem se dar ao luxo de saber o que é luto.
Quando sobem os créditos, fica aquele “gostinho de quero mais” e particularmente, não existe sensação melhor para se sentir depois de uma sessão de cinema. Os personagens e as discussões ainda estão comigo, agora mesmo enquanto escrevo, como se fossem velhos amigos, me instigando para uma revisitada, mesmo que eu os tenha visto a tão pouco tempo e mesmo que a mensagem, a meu ver, tenha ficado muito clara. Até porque, os poucos enquadramentos abertos que temos de todos os personagens juntos dizem tudo: de longe, eles são uma família, mesmo que disfuncional e problemática. Mas, afinal, não seriam, umas mais outras menos, todas assim?
Roteirista e podcaster bacharel em Cinema e Audiovisual. Ex-potterhead. Escuta música triste pra ficar feliz e se empolga quando fala de The Last of Us ou Adventure Time. É viciado em convencer as pessoas a assistirem One Piece, apreciador dos bons clássicos da Sessão da Tarde e do Cinema em Casa e, acima de tudo, um Goonie genuíno.