Desejo Sombrio: 1ª Temporada – Quer surpreender e esquece do potencial

Seja qual for a proposta, não é um muito difícil um novo lançamento da Netflix conquistar o buzz e se manter entre o top mais assistido no catálogo. Sendo assim, anunciar a estreia de um suspense erótico – com pitadas de dramalhão – protagonizado por Maite Perroni, garantiria o sucesso imediato para o streaming. A trama de Desejo Sombrio (Oscuro Deseo, 2020) não poderia ser mais genérica: na pele da professora de direito, Alma (Perroni) vê a perfeita vida virada de cabeça para baixo ao se envolver com Darío (Alejandro Speitzer), e além da descoberta do rapaz ser um de seus alunos (ah,vá), a sra. Solares passa a lidar com uma teia de crimes e mentiras cada vez mais tenebrosos.

Ter um enredo que é conduzido por uma fórmula, trás ali em sua estrutura elementos selecionados para que o telespectador possa brincar com enigma e chegar ao veredito. Mas para fortalecer tal método, precisa introduzir o universo com peças interessantes o suficiente a fim de que embarquemos convencidos da proposta misteriosa. No caso de Desejo Sombrio, o protagonismo de Maite assume o controle rapidamente em tela. Logo entendemos que Alma vive em rupturas e dúvidas no casamento com o renomado juiz Leonardo Solares (Jorge Poza), e sair para uma festa com a amiga Brenda (María Fernanda Yepes), atrai o escape de emoção que o cônjuge não oferece: Darío. Toda essa composição embasa um retrato genérico de partida para a história, mas o show criado por Leticia López Margalli já destacava seu forte apelo feminino.

Contextualizando com a atuação profissional de Alma – nos certeiros seminários sobre violência de gênero – ceder ou não a um desejo de atração sexual, refletia na personagem a cultura patriarcal do que e como uma mulher deve ser: íntegra, respeitosa, que não se envergonha, não envergonha e dá exemplo. Desde o desenvolvimento na base familiar, a mulher já ouve os parâmetros cobrados pela sociedade e as expectativas postas, nisso, programar um futuro, sofre com os resquícios do que vão pensar e se definir exatamente como deve ser. Casar, ter filhos, ser uma boa esposa. Mas já entregue pelo título da série, Alma não resiste ao desejo, o que vem o entendimento do sombrio: ter se permitido, acarreta experimentar o proibido, o feio, aquilo que não pega bem para uma mulher. Há algo provocante e perigoso ir para o outro lado, é escuro. Obviamente, a segunda coisa sombria, está nos eventos desencadeados após o bom sexo.

Com dois episódios, para mim o desenho estava nítido: lapidado nas calorosas cenas eróticas, Oscuro Deseo queria tratar sobre realidades femininas, envolvidas em relacionamentos abusivos, e os cenários conturbados que resultam em feminicídios – ainda com 365 Dias (365 dni, 2020) em alta, a série discute sobre cárcere privado, sequestros, tráfico de mulheres, na mesma Netflix que topou a distribuição de um filme completamente questionável e absurdo. Estabelecendo três mulheres na narrativa: Alma, a filha Zoe (Regina  Pavón) e Brenda – o que entra o mistério por trás de sua morte -, a atração centraliza seus debates nessas figuras ao demonstrar como elas são vítimas de diferentes formas, de homens tóxicos, dominadores, agressivos e possessos e envoltos na masculinidade frágil e agravante. Um exemplo, é a maneira que Alma é questionada e tratada por trair, vindo de elementos masculinos com atos cada vez mais controversos.

Os modelos são típicos: julgam as mulheres pelo que costumam fazer sem serem apontados, e se jogados contra a parede, apelam para as intenções de amor, o choro, em reações insistentes e coativas de que a derrapada que deram nada tem a ver com que realmente sente. Além disso, Desejo Sombrio conduz um enorme acerto por trás da morte de Brenda. Do piloto ao final da temporada, um dos suspense é focado na personagem, e nesse quesito, a série não peca ao oferecer as respostas de maneira relevante e consciente do que queria passar, e o mais importante, a coerência ao ponto inicial sobre violência de gênero, relacionamentos e arquétipos requeridos às mulheres.

Por mais que toda essa reflexão alcance êxito, a série fraqueja muitas vezes na condução diante da fórmula ao qual recorreu. Durante os dezoito episódios de menos de quarenta minutos, não há um capítulo sequer que não tente mostrar que a história vai além das aparências. Assim, entra o jogo de apontar suspeitas – com informações específicas para munir as teorias e depois mudar o foco -, chocar nos desfechos, e por último, alarmar nas reviravoltas. Nessa sacada de querer surpreender, a direção de Kenya Marquez e Pitipol Ybarra acaba se excedendo nas conveniências, frases bregas e ensaios tão óbvios para gerar impacto, que terminam sufocando o potencial social que de todo jeito desenvolveu.

Optar por esse caminho, afirma que a escolha de 18 episódios foi para trabalhar por nuances de dúvidas por trás do suspense, e claro, nas melhores intenções, no intuito de potencializar o argumento feminino. Porém, distribuir a atenção no mistério, por consequência, desvia a atenção para apresentar ao público itens pautados para interagirem com o mistério e tirarem suas conclusões – nem que para isso cheguem ao final com um amontado de furos.

Visto o sucesso, é provável a renovação da série, mas para o primeiro ano, temos um erotismo dosado, protagonismo feminino e tom novelesco cheio de papagaiada e recursos narrativos que uma hora cansam.


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