Há uma cena do livro Pessoas Normais, que deu origem à série homônima da BBC/Hulu, Normal People (2020), na qual o casal protagonista discute o que fazer, a médio e a longo prazo, com a perspectiva do fim dos anos escolares. Qual graduação fazer, qual carreira profissional construir, essas dúvidas de todo adolescente. Connel, filho de uma faxineira, pensa numa educação que lhe proporcione um trabalho rentável no futuro, mas é persuadido por Marianne, em cuja casa trabalha a mãe de Connel, a estudar Inglês na graduação, por conta de seu envolvimento com literatura. “Bem, não tenho certeza quanto às perspectivas profissionais…”, hesita ele. “Quem se importa? A economia está fodida, de qualquer maneira”, reage ela, bruscamente.
O momento é sutil, quase imperceptível diante dos grandes acontecimentos da história, mas evidencia alguns dos desconfortos de classe que permeiam a amizade romântica de Connel e Marianne, num relacionamento de idas e vindas que se arrasta por anos, tanto no livro da irlandesa Sally Rooney quanto na série limitada. As duas obras analisam detidamente essa relação, que se abre como um amor proibido na escola e segue até o início da vida adulta dos dois, no encerramento da graduação de ambos.
Lançado em 2018, o livro foi alçado ao patamar de clássico instantâneo, tornando-se um fenômeno editorial. O romance de Sally Rooney costuma ser festejado por tratar de uma forma bastante íntima das angústias da atual geração de jovens adultos, dos debates políticos aos quais eles se veem envolvidos, da sensação de despertencimento e desconforto em distintos setores da vida contemporânea. A série da BBC/Hulu também parece ter logrado esses êxitos, apresentando uma das maiores audiências do serviço de streaming e já prometendo dois episódios extras com participações especiais.
Em linhas gerais, Marianne (Daisy Edgar-Jones), uma garota rica, e Connel (Paul Mescal), um garoto pobre, se conhecem na escola, onde habitam mundos sociais diferentes. Enquanto ela é isolada e sofre um bullying incompreensível pelos colegas, que a acham feia e estranha, ele integra o time dos populares, sendo uma estrela do esporte e aceitando convites para festas nos fins de semana. Eles começam a se envolver em segredo, a partir das coisas que, apesar de suas diferenças sociais, os aproximam: ambos são inteligentes, têm posições políticas próximas, leem livros como O Carnê Dourado, de Doris Lessing, espécie de livro-símbolo do feminismo socialista britânico de fins do século XX. (É engraçado notar como funcionam as desigualdades sociais em países prósperos e com uma política de bem estar social razoável, como a Irlanda. Connel é pobre e Marianne é rica, mas ambos têm acesso a carros, estudam na mesma escola, vão para a mesma universidade.)
No entanto, Connel não tem coragem de convidar Marianne, uma pária social, para as debs (espécie de prom irlandesa, um jantar de formatura), dispensando-a de forma desajeitada. Esse é o pecado original da relação dos dois, que vão se reencontrar na Trinity College, universidade elitizada em Dublin, capital da Irlanda, algum tempo depois. Dessa vez, os papéis se invertem: agora é Marianne que parece ter se encontrado com um grupo de amigos populares, que participam de festas descoladas e gostam de debater política por prazer, enquanto Connel é o estranho da vez, sempre sozinho e trabalhando meio-turno num restaurante para pagar o aluguel de um quarto compartilhado. Não demora até que eles voltem a se envolver sexual e romanticamente e comecem tudo de novo.
A série é dividida entre 12 episódios que se desenrolam num ritmo lento e melancólico, explorando as paisagens rurais da Irlanda e os interiores sombrios da escola, da universidade e das casas dos personagens. Até o terceiro episódio quase não se veem cores quentes; nas cenas passadas no colégio, na primeira parte da história, há um predomínio de cinza e azul, e não é raro vermos Connel e Marianne alheios, em planos que os colocam um tanto afastado da multidão de estudantes, todos com o mesmo uniforme sem cor. Nenhum dos dois sente que pertence aquele mundo, embora Connel tente se enganar com sua popularidade circunstancial.
Os (constantes) reencontros de Connel e Marianne são sempre especiais, há sempre a sensação de que os dois são a pessoa um do outro neste mundo, e que quando eles estão na própria companhia existe um sentimento forte de normalidade e tranquilidade. É quando eles estão afastados do burburinho e do movimento do mundo que se sentem confortáveis, a felicidade ali sendo quase que um desejo pela previsibilidade. O mundo é um lugar impossível, de onde eles sempre se sentem estranhos invasores. Como espectadores, ficamos também ansiosos para que Marianne deixe de lado seus namorados imprevisíveis e caóticos (há cenas perturbadoras de sadomasoquismo e de violência da metade para o final da série) e volte a estar com Connel.
A câmera se aproxima do rosto dos dois de forma quase invasiva, tornando possível ver marcas de acne e poros na pele, um nível de intimidade que não temos com muitos personagens por aí. As cenas de sexo são especialmente marcantes; são inúmeras (o segundo episódio é quase inteiramente dedicado a elas) despudoradas e bonitas, e ajudam ativamente a construir a relação dos protagonistas. Nesses instantes, chegamos a nos questionar se é realmente proibido depositar nossa felicidade em outra pessoa, coisa que a maioria dos livros de autoajuda, coaches etc proíbem expressamente. No momento mais comovente de toda a série, quando Connel enfim encara seus demônios e tenta elaborar seus sofrimentos, o jovem explica sua relação com Marianne com as palavras mais simples possíveis: “Nós enxergamos o mundo de uma forma parecida. Nós vivemos a vida no mesmo lugar. É difícil ficar longe dela”.
Mas é claro que há muitas pedras na trajetória da amizade e do romance de Connel e Marianne. Vividos com um equilíbrio sensível entre graça e rigidez por Paul Mescal e Daisy Edgar-Jones, os dois se comunicam terrivelmente mal e tropeçam com frequência no caminho um do outro. Enquanto Marianne está sempre tentando controlar a libido de Connel performando uma submissão sexual, Connel sente fortemente o peso da diferença de classe que age sobre os dois. Seus distintos espaços sociais definem parte da forma com a qual eles enxergam o mundo, definem parte de suas neuroses e paranoias individuais, dificultando a negociação entre os dois. Num episódio passado numa charmosa propriedade rural italiana da família de Marianne, Connel diz, meio tristemente: “Eu acho que nós viemos de contextos bem diferentes, em termos de classe social”. No que Marianne responde: “Eu não penso muito nisso”. Claro que não.
O romance cifrado de Marianne e Connel ganha o charme adicional de uma trilha sonora introspectiva e atmosférica, protagonizada por um piano-e-cordas com inserções eletrônicas ora suaves ora desconcertantes. As canções que aparecem em todos os episódios também conversam com a história principal, às vezes com letras até bem incisivas sobre o romance dos dois, com direito a versões de clássicos como “Make You Feel My Love” e “Love Will Tear Us Apart”. Os defeitos do livro também aparecem na série (os personagens secundários são quase todos unilaterais, a violência familiar sofrida por Marianne soa um tanto gratuita e caricata), mas eles perdem destaque diante da força da história principal, que condensa as aflições românticas e sociais de uma geração que tem que encarar a vida adulta e a ideia de ser uma pessoa normal na mais fodida das economias.
Um jornalista baiano e escorpiano que gosta de longas caminhadas na praia e acha a experiência humana muito cansativa. Ícone de grupos de whatsapp e telegram, as paixões de Bertonie vão de Miyazaki a Truffaut, de Bowie à Bethânia, mas seu maior vício é fazer e escrever em blogs.