Bixa Travesty – Vidas trans pretas importam

Viajar através de obras audiovisuais sempre tem o potencial de ser uma experiência única, maravilhosa, monstruosa, assustadora, dramática. Poderia estar aqui falando o quão incrível e maravilhoso o filme Bixa Travesty (2018) é, mas não… Esperem, não vou fazer só isso. Também não vou continuar numa conversa sobre ‘pessoas cis precisam entender’, porque a essa altura você já deveria ter entendido. Mulheres trans e travestis negras são a precursoras dos movimentos LGBTQ+, é extremamente injusto falar sobre respeitá-las quando elas sempre deveria ter sido admiradas e enaltecidas.

Você vai viajar e você vai gostar. Ao assistir o documentário Bixa Travesty no qual temos a história de Linn… não, não é sua biografia, é a sua história. De certa forma, Linn conta a sua história, passando pelo seu pessoal, pelo íntimo, pelo artístico, pelo terrorismo de gênero. Linn da Quebrada é uma cantora conhecida, reconhecida, aclamada, talentosa e aqui ela não só aparece na tela mas teve um papel importantíssimo na criação do roteiro desse filme. Ou seja, de certa forma, Linn é quem nos guia por essa viagem, ou melhor, essa tour por sua própria história.

É interessante assistir esse filme como fã da artista, cujos trabalhos como cantora, ativista, atriz, apresentadora, nem começam a compreender sua grandiosidade. Primeiramente falar aqui sobre sua música. Não sobre o alcance de sua voz, mas sobre o papel da música feita por Linn na construção de um terrorismo de gênero. Presentes ao longo como trilha musical do filme, músicas em sua maioria do álbum PAJUBÁ da artista, é a voz dela guiando os ouvidos também nessa viagem. São suas palavras sobre ser uma travesti, sobre ser uma mulher, sobre contar sua vivência e relatar sua existência.

“Estou procurando… Estou procurando…”

Ecoando pelo ar já nos primeiros quadros do filme, enquanto vemos nossa ‘personagem’ ali procurando e buscando. Uma lanterna na mão, ela procurava por algo. Ao longo do filme é criada uma narrativa clara sobre a sua procura. Nos levando para outra pessoa importante não apenas na obra, na carreira, mas também na vida pessoal, da digníssima Linn. Jup do Bairro, melhor amiga de Linn, uma outra artista completa de múltiplas linguagens como moda, escrita e mais recentemente consagrou mais uma arte na música com o lançamento de seu EP ‘Corpo Sem Juízo’.

Deve-se dizer, aqui contamos a história de Linn e de Jup. Não só sobre quem elas são, mas também é sobre o potencial infinito das duas de ser, assim como muitas pessoas trans tem o potencial. Cada uma de forma única com sua voz. Aqui vemos o alcance das vozes delas, do protagonismo delas, pessoas negras e transexuais. Na verdade a própria Linn se revela ser uma mulher cis com passabilidade trans, para o choque de todos. Mas, brincadeiras a parte, é incrível a forma como a narrativa trabalha o humor para apontar coisas importantes pautando em vivências reais dessas pessoas. 

“Desobedeceu seu pai, sua mãe, o estado a professora…”

Se é raro na ficção a gente ver uma relação minimamente saudável de mulheres transexuais com suas mães, nem preciso falar do impacto da relação mostrada nesse documentário. Sabe por quê? Muito é tentado se fazer acreditar na única narrativa possível para pessoas trans é sair de casa, ser abandonada pela família. Quando assisti Linn corrigindo sua mãe, e a mesma se corrigindo, foi uma das coisas mais bonitas de se ver. Isso serve para tantas mães cis entenderem que não há desculpa para sua transfobia, não é sobre falta de educação apenas é sobre um preconceito. O momento onde vemos a cena de Linn e sua mãe se banhando juntas é realmente algo extremamente poético de tantas formas.

Mulheres tem pênis. Outras não. Mulheres tem barba. Outras não. Mulheres tem peito. Outras não. Um diálogo semelhante ocorre no filme. É importante estar escrevendo sobre isso durante uma onda crescente de transfobia, falando sobre como mulheres são seres múltiplos. Não é sobre ter uma coisa ou não. Muito para além disso, muito para além de suas diferentes vivências. Numa descontraída conversa, Linn e Jup conversam sobre a hormonização e mais importante, a não hormonização, pois não é o desejo de pessoas trans tomar hormônios. Mais uma vez cito, é o que o “cis-tema” espera de toda pessoa trans.

“Eu gosto mesmo é das bicha, das que são afeminadas…”

Todos somos reflexos de uma sociedade e é importante termos noção disso, ter noção dos preconceitos herdados por isso e dos privilégios existentes. Uma forma de privilégio não anula outra forma de opressão. Homens cis gays colhem os frutos de serem homens e de serem cis, mas não deixam de viver numa sociedade onde ser gay ainda é visto como errado e como pecaminoso. É importante ressaltar aqui as violências produzidas por pessoas cis, quando não respeitam pronomes, quando debocham de identidades, quando usam os nomes mortos (termo comumente usado para o nome de batismo das pessoas trans, não condizente com seus reais gêneros e suas identidades).

“Nem sempre há um homem para uma mulher, mas há dez mulheres para cada um… Nem sempre uma mulher é sempre uma mulher…”

Talvez seja a vontade de me ver, mas Linn e Liniker cantando essa melodia e de certa forma validando que o gênero não é obrigatoriamente eterno e imutável ou permanente fala comigo. Acho que quando começo a falar de mim pela primeira vez num texto é hora de encerrar com uma importante mensagem: assistam Bixa Travesty. O filme é brasileiro, sobre uma trans negra, da periferia, performer e terrorista de gênero, mas ela é tantas outras coisas. Acima de tudo ela é humana, com suas particularidades, gostos, desgostos e um sorriso contagiante. 

De tanto procurar ela termina encontrando aquilo pelo qual ela nem procurava de verdade. Essa é a Linn da Quebrada. Não é tudo que tem dela porque não vamos nunca conseguir de verdade capturar a essência de alguém numa obra de menos de duas horas. Mas é um pedacinho, um pedacinho muito importante para todo mundo ver. Bixa Travesty está disponível para aluguel no YouTube e na Google Play Filmes.