Os 35 Anos do Cine Ceará: Festival Ibero-Americano de Cinema – Um olhar diário e sobre o cinema

Nota: Uma versão reduzida desse texto foi produzida para o site da Abraccine e pode ser conferido aqui.

Introdução

Este dossiê celebra os 35 anos do Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, que aconteceu entre os dias 20 e 26 de setembro de 2025, em Fortaleza. Essa introdução pretende contextualizar os leitores sobre a estrutura do festival e a escolha da escrita dos textos seguintes, bem como apresentar os vencedores da categoria Júri da Crítica. Segundo as informações do  site do festival, o evento se dividiu nas seguintes mostras: a Mostra Competitiva Ibero-americana de Longa-metragem; a Mostra Competitiva Brasileira de Curta-metragem; a Mostra Olhar do Ceará (com curtas e longas); a Mostra Acessibilidade; a Mostra O Primeiro Filme a Gente Nunca Esquece; a Mostra Melhor Idade e as Exibições Especiais. No total, foram exibidos mais de 30 filmes, entre curtas e longas.

Fiz parte do Júri da Crítica, promovido pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) em parceria com a Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). Sou sócio da Abraccine desde 2022 e da Aceccine desde 2016. Ao meu lado, para compor o júri, estavam a jornalista e crítica de cinema do jornal O Povo, Eduarda Porfírio, como representante da Aceccine, e o professor, roteirista, autor e crítico de cinema, Celso Sabadin, como outro representante da Abraccine. Juntos, fomos responsáveis por avaliar e premiar, com o Prêmio da Crítica, as produções das Mostras principais, a Ibero-americana de Longa-metragem e a Brasileira de Curta-metragem.

Este texto apresenta minhas opiniões sobre as mostras, não refletindo ou concordando necessariamente com a visão de meus colegas de júri. Optei pelo formato de diário, no qual relato, a cada dia, minhas experiências nas sessões noturnas realizadas no Cineteatro São Luiz, no centro de Fortaleza. O festival acontece em diversos locais da cidade, como o próprio São Luiz, o Cinema do Dragão do Mar, o Hotel Sonata de Iracema e a Praça dos Leões.

Por questões logísticas, como jurado da crítica, acompanhei somente as sessões que faziam parte da minha avaliação, realizadas no Cineteatro São Luiz, como já foi dito.

A estrutura de diário, com textos redigidos logo após cada sessão, possibilitou um olhar mais focado para cada produção cinematográfica, sem ser influenciado por uma visão geral ou pelo convívio direto com diretores, produtores, equipe e familiares presentes nas exibições. Essa escolha buscou assegurar avaliações mais imparciais e destacar obras que merecem análise crítica.

Explicadas as justificativas e as metodologias para analisar cada produção, passo a apresentar os dias com suas respectivas obras. Ressalto que as produções das mostras especiais (que incluem O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho; Para Vigo Me Voy!, de Lírio Ferreira e Karen Harley; Morte e Vida Madalena, de Guto Parente; e os filmes do Directors’ Factory Ceará Brasil) terão textos mais simples. Minha atenção, como crítico, estará voltada para a análise dos filmes das duas principais competições: a Ibero-americana de Longa-metragem e a Brasileira de Curta-metragem.

Por exemplo, o longa O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, exibido na noite de 24 de setembro, terá apenas informações técnicas neste dossiê. Devido à sua relevância, a obra receberá um texto exclusivo posteriormente, fora do contexto do festival.

Por fim, o festival contou com dois pontos negativos. Um deles vou abordar entre os dias 23 e 24, mas é referente à retirada do ingresso para ver o filme do Kleber. O outro aspecto que permeou todo o festival e que talvez seja digno de nota é a qualidade do áudio durante a exibição das obras. Em algumas produções, por exemplo, não era possível ouvir ou entender o que se dizia sem o uso de legendas. Não há como indicar qual filme tenha sido mais prejudicado que outro, uma vez que todos em maior ou menor medida sofreram com os problemas de áudio.

Parece um tanto estranho que a maioria dos filmes apresente esse problema, tendo como aspecto comum o local de projeção. Se o Cinema do Dragão do Mar conta com a melhor sala de exibição do estado e uma das melhores do país, é fundamental que o Cineteatro São Luiz, um equipamento que também pertence à Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, esteja apto para a exibição de diferentes produções audiovisuais. A título de exemplo, as vinhetas dos patrocinadores e apoiadores eram apresentadas com um áudio altíssimo, enquanto o som de alguns filmes estava quase inaudível. Isso não se tratava de uma proposta estética ou narrativa, mas sim de uma evidente falha técnica ou de equipamento, seja por parte do festival ou da equipe de mixagem das obras.

Feitas as considerações iniciais, apresento minhas impressões sobre cada dia.


Sábado, 20 de setembro de 2025 – Abertura

A abertura do 35º Cine Ceará contou com a estreia mundial do longa Gravidade (2025), de Leo Tabosa, estrelado por um elenco de destaque: Hermila Guedes, Clarisse Abujamra, Danny Barbosa, Marcélia Cartaxo e a participação especial de Helena Ignez.

A trama acompanha essas mulheres em uma história que mistura suspense e terror. Há uma grande metáfora envolvendo o fim do mundo e como uma tempestade solar poderia alterar a gravidade terrestre. Esse tema é reiterado por uma personagem e reforçado por elementos diegéticos, como programas de rádio e transmissões pela internet.

O longa utiliza uma linguagem simbólica para tratar temas como luto, aceitação e questões de gênero, alinhados à proposta escolhida. Parece ser uma tendência do cinema contemporâneo abordar essas temáticas por meio de signos já consolidados na indústria, adaptando-os para narrar novas histórias.

Clarisse Abujamra (à esquerda) e Marcélia Cartaxo (à direita) no longa Gravidade, de Leo Tabosa.

Nesse sentido, a produção de Leo Tabosa, conhecido por seus curtas, enfrenta um obstáculo que prejudica um pouco a experiência. A obra oscila entre cenas e diálogos que, às vezes, são excessivamente expositivos e, outras, enigmáticos. Por vezes os diálogos explicam algo que já é mostrado pela imagem, e por outros fica tudo muito subentendido e misterioso. Tudo seria resolvido a partir daquela máxima do cinema “mostre e não conte”. Isso gera um desequilíbrio, considerando, principalmente, a narrativa que deseja construir. Dá a impressão de que o filme aspira a ser algo maior do que realmente é, o que acaba sendo prejudicial para a narrativa que se pretende contar.

Isso fica evidente nos diálogos que terminam abruptamente, além de ações de personagens e cortes estranhos na edição final. Uma vez que o problema está no roteiro e nos diálogos, destaco que o ponto forte está no carisma do elenco, formado por mulheres talentosas que entregam boas atuações apesar do roteiro problemático.

Helena Ignez (à esquerda) e Marcélia Cartaxo (à direita) no longa Gravidade de Leo Tabosa.

Outro ponto de destaque é a cinematografia, especialmente em cenas noturnas e à luz de velas. Fiquei impressionado com como as cenas captam a luz necessária para revelar sentimentos importantes, especialmente em uma obra tão metafórica. Esse mérito não é surpreendente, pois quem assina a fotografia é Petrus Cariry, reconhecido por entregar um excelente trabalho, seja em seus próprios filmes ou em projetos nos quais participa.

Leo Tabosa vem de uma carreira consolidada em curtas e se aventura em seu primeiro longa, que por vezes se mostra tímido. Seu maior desafio reside no roteiro e nos diálogos, mas ganha pontos pela força do elenco e pela fotografia. Considerando seu histórico, a expectativa pelo longa era alta. Mesmo assim, a obra tem méritos e merece ser apreciada por críticos, festivais e público.


Domingo, 21 de setembro de 2025 – Segunda Noite

Na segunda noite, iniciou a seleção competitiva de curtas brasileiros, com a produção Minha mãe é uma vaca (2024), de Moara Passoni. A história acompanha Mia (Luisa Bastos), uma garota enviada pela mãe para ser cuidada pela tia no Pantanal, área frequentemente atingida por queimadas — fato mencionado no filme.

Mia é introspectiva, conversa consigo mesma e tem forte carga emocional em relação à mãe. O motivo do envio não é claro, mas pistas surgem ao longo dos 15 minutos do curta. Esse sentimento é reforçado pela direção e pelos enquadramentos, que revelam o lado íntimo da personagem, como quando ela está à beira do rio, com um véu azul, fazendo uma oração pela proteção da mãe.

Em dado momento, Mia decide soltar uma vaca destinada ao abate na fazenda e fugir com ela. A direção e edição apontam para uma metáfora visual, reforçada pelo uso da técnica da “noite americana” — o tom azulado e o céu encoberto conferem à história um ambiente quase sobrenatural.

Minha Mãe é Uma Vaca, curta metragem de Moara Passoni

Embora seja apenas o segundo dia, acredito que o curta inicia a mostra competitiva com boas perspectivas, aumentando a ansiedade pelas produções dos dias seguintes. Além da mostra competitiva, a noite contou com duas sessões especiais. A primeira foi o documentário Para Vigo Me Voy! (2025), de Lírio Ferreira e Karen Harley, sobre a vida e obra do cineasta brasileiro Cacá Diegues, falecido em fevereiro de 2025.

A obra, exibida no Festival de Cannes 2025, traça a trajetória emotiva do cineasta, mesclando cenas de suas obras, entrevistas e acervos de familiares e amigos. A montagem constrói um retrato marcante não apenas do cineasta, mas de um importante e fundamental recorte do cinema brasileiro.

Para Vigo Me Voy!, documentário de Lírio Ferreira e Karen Harley

A segunda sessão especial proporcionou a exibição de quatro curtas do projeto Programa Directors’ Factory Ceará Brasil, que, segundo o site do festival, visa a formação de jovens realizadores com perspectiva de internacionalização da produção audiovisual regional e que abriu a Quinzena de Cineastas em Cannes.

Os curtas são:

Ponto Cego (2025), de Luciana Vieira e Marcel Beltrán, sobre Marta, engenheira de segurança no porto de Fortaleza, que sofre opressões e uma tentativa frustrada de agressão do chefe.

A Vaqueira, A Dançarina e O Porco (2025), de Stella Carneiro e Ary Zara, que narra a história de uma cowgirl trans que entra num bar onde sua amante, uma showgirl negra, trabalha sob domínio de um porco violento; o filme utiliza elementos do faroeste em uma roupagem surreal e simbólica.

Como Ler o Vento (2025), de Bernardo Ale Abinader e Sharon Hakim, sobre Cássia, curandeira tradicional que prepara sua discípula Marjorie para receber seu legado, apresentando uma história emocionante e sensível.

A Fera do Mangue (2025), de Wara e Sivan Noam Shimon, que narra a trajetória de um homem poderoso que exigia descendentes, até que uma vítima liberta uma força mítica vingadora no mangue, trazendo simbolismos relevantes para a sociedade.

Realizadores que integraram o Programa Directors’ Factory Ceará Brasil

Conforme informado no site do Cine Ceará, o Programa Directors’ Factory é realizado pelo Governo do Estado do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura, com apoio do Museu da Imagem e do Som, da Escola Porto Iracema das Artes, do Instituto Mirante de Cultura e Arte, do Instituto Dragão do Mar e do Projeto Paradiso, produzido pela Cinema Inflamável e DW, em parceria com diversas produtoras cearenses.


Segunda, 22 de setembro de 2025 – Terceira Noite

Na terceira noite, foram exibidas três obras: um curta e dois longas.

A exibição se iniciou com Amores na Pasajen (2025), de Daniele Ellery, documentário que apresenta a história de mulheres brasileiras, cearenses e da Guiné-Bissau, em relacionamentos interculturais e inter-raciais. O filme explora suas percepções sobre a sociedade, especialmente o racismo e a xenofobia, utilizando linguagem documental tradicional, como entrevistas e cenas do cotidiano.

O segundo filme, primeiro longa da noite, é outro documentário: Do outro lado do pavilhão (2025), de Emilia Silveira. A história acompanha duas mulheres negras e periféricas, Érica e Núbia, que se conheceram na prisão e mantêm a amizade fora dela.

Do outro lado do pavilhão, de Emilia Silveira

A produção apresenta uma estrutura interessante: além das entrevistas, há uma construção temporal e encenações feitas pelas próprias mulheres. A diretora mostra uma cena em que uma tomada foi interrompida, evidenciando a relação de confiança entre a equipe e as participantes.

O tom é sério, denunciando as condições precárias das prisões femininas no Brasil, desde a infraestrutura até a superlotação das celas. Retrata também o abandono e a solidão das detentas e ex-detentas, evidenciando falhas do Estado e das políticas públicas no processo de ressocialização e no acesso à defesa, recurso que parece acessível somente para pessoas brancas e influentes. Denuncia abusos físicos e emocionais da polícia e o ciclo injusto reforçado pelo sistema.

O último longa da noite é o documentário equatoriano Eco de Luz (2024), de Misha Vallejo, que se diferencia dos anteriores. A obra acompanha o diretor ao receber fotos e câmeras antigas de seu avô, ausente em sua vida. A partir daí, busca conhecer o avô, revelando não apenas sua história pessoal, mas um retrato da sociedade equatoriana e da América Latina, com suas heranças coloniais.

Eco de Luz , de Misha Vallejo

O ponto forte reside na imparcialidade do olhar: o público descobre com o diretor que o avô não era uma boa pessoa, mudando o foco para a avó e seus pais. Revela histórias de vida e uma complexa cadeia de sentimentos humanos, mostrando fragilidades e contradições sem julgamento moral, assumindo que pessoas podem errar, se arrepender e evoluir.

A linguagem e a fotografia são belíssimas, fortalecendo o caráter emocional do filme, que traz não apenas uma narrativa interessante, mas um retrato tocante de uma história familiar que poderia ser a de qualquer um de nós, latino-americanos.


Terça, 23 de setembro de 2025 – Quarta Noite

Na quarta noite, foram exibidos quatro curtas da mostra competitiva brasileira e um longa da mostra Ibero-Americana de Porto Rico.

Os curtas brasileiros foram:

Réquiem para Moïse (2025), de Caio Barretto Briso e Susanna Lira. Documentário sobre o assassinato do imigrante congolês Moisés, morto em ação policial. A câmera acompanha a indignação e a frustração daqueles que buscaram no Brasil uma vida melhor e se depararam com violência e racismo explícito. O filme utiliza câmera móvel que segue ações de amigos e protestos logo após a morte.

Bandeira de criança (2025), de João Toldi, que mostra uma brincadeira infantil e uma briga tensa envolvendo uma ameaça com arma de fogo (do pai da criança mais velha), retratando a criação e as violências e estereótipos ligados às relações parentais.

Boi de Salto (2025), de Tássia Araújo, que estabelece uma relação íntima com as tradições do Nordeste, ressaltando símbolos e linguagens regionais, além de uma linguagem performática inerente e bem-vinda no cinema.

Boi de Salto, de Tássia Araújo

Fogos de artifício (2025), de Andreia Pires, resgata a energia dos curtas cearenses produzidos e exibidos na década passada, com participações de figuras reconhecidas do audiovisual local. O filme evoca um forte sentimento nostálgico para o público e para mim.

Este último curta apresenta atuações sólidas e um excelente plano-sequência que celebra a juventude, o linguajar e os gestos dos fortalezenses. É, sem dúvida, uma obra divertida, engraçada e bem realizada.

Para concluir, foi exibido o longa Esta Isla (2025), de Lorraine Jones e Cristian Carretero. A produção mostra a realidade do povo porto-riquenho, com uma história envolvente sobre juventude, crime e a tentativa de romper esse ciclo. Depois disso, a obra segue uma estética road movie, exibindo o interior e o litoral de Porto Rico.

As belezas das paisagens e o carisma dos personagens, no entanto, são prejudicados com um ritmo lento, possivelmente decorrente de uma montagem que poderia ser mais ágil. Embora a história não seja inédita no cinema, a produção é bem executada, mas perde pontos pelo ritmo.

Esta Isla, de Lorraine Jones e Cristian Carretero

Como crítico, não posso deixar de registrar uma falha ocorrida. Querida pessoa leitora, preciso relatar um problema externo que impactou a experiência do festival. Amanhã, dia 24, será exibido o filme O Agente Secreto, do aclamado cineasta recifense Kleber Mendonça Filho. Como de praxe nos dias anteriores do Cine Ceará, a retirada de bilhetes para a sessão do dia 24 deveria ter ocorrido no dia 23. No entanto, algo preocupante aconteceu: a plataforma virtual de resgate do festival esgotou as entradas em menos de um minuto, o que impediu o acesso de centenas de cearenses interessados em assistir à obra.

A popularidade de Kleber — impulsionada por seus prêmios em Cannes (2025) e pelo recente Oscar de Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles — tornava ingênua a suposição da produção do festival de que o Cineteatro São Luiz seria suficiente para comportar o público interessado.

Além disso, surgiram indícios de que parte dos ingressos foi reservada para convidados. Esses relatos não são meras conjecturas, mas informações provenientes de pessoas que estavam nas filas e no saguão do Cineteatro São Luiz na noite do dia 23.

Não acredito que tenha sido uma falha proposital por parte da organização do evento, que optou por uma distribuição exclusivamente virtual. Essa escolha — que chamarei aqui de equivocada — possibilitou o surgimento de uma prática desagradável: o aparecimento de cambistas, que começaram a anunciar a venda de ingressos por preços exorbitantes no próprio Instagram do festival. Essa informação é facilmente verificável, tanto no perfil do Cine Ceará quanto em veículos de imprensa, como O Povo. Não se trata, portanto, de conjecturas, já que eu mesmo pude constatar a oferta e venda ilegal de ingressos, registrando-as por meio de capturas de tela, resguardando os nomes das pessoas envolvidas e das ofertas publicadas.

Se a intenção do Cine Ceará era mostrar uma sala de cinema lotada e uma grande presença de público, o resultado acabou gerando uma sensação de injustiça — algo que pode afastar espectadores não apenas do espaço cinematográfico, mas também das produções nacionais.

Diante desse cenário, questiono se não seria possível realizar projeções em praças públicas, como ocorreu em outras edições do Cine Ceará, ou em outros locais, como o Cinema do Dragão do Mar, que já abriga a mostra Olhar do Ceará. Acredito que a limitação de público não tenha sido uma decisão de Kleber Mendonça Filho, dada sua trajetória e seu amor pelo cinema, e que ele provavelmente gostaria que seu filme fosse visto pelo maior número possível de pessoas.

Claro que também não seria ingênuo a ponto de acreditar que a realização de uma sessão extra ou de exibições paralelas dependa exclusivamente do diretor ou da organização do festival, já que há toda uma agenda definida pela distribuidora do filme. Não cabe aqui julgar se a estratégia adotada está certa ou errada. Contudo, a responsabilidade pelo esgotamento rápido dos bilhetes — e pela sensação de injustiça causada — recai sobre a organização, que adotou um sistema ineficaz de retirada. Nesse caso, acredito que seria mais eficiente um sistema de retirada exclusivamente presencial e limitado a um ingresso por CPF, ainda que isso pudesse gerar filas antes das exibições.


Quarta-feira, 24 de setembro de 2025 – Quinta Noite

Chegada à noite do dia 24, as minhas suspeitas do dia anterior se confirmaram. A praça, o hall e a sala do Cineteatro São Luiz estavam lotados, marcando a maior ocupação do festival até então. Em circunstâncias normais, essa cena seria motivo de celebração, um forte elo entre a população e a arte. Contudo, devido à polêmica distribuição dos ingressos, foi impossível assistir O Agente Secreto (2025) sem um sentimento de revolta, que nada teve relação com a obra, mas com toda a situação e o entorno do acesso ao cinema.

A lotação era composta, na maioria, por membros das equipes dos filmes, elencos, convidados e imprensa. Pessoas que mereciam estar ali, mas também que ocuparam ingressos que poderiam ter sido destinados ao público geral. Infelizmente, testemunhamos a perpetuação de uma elite cultural (e por vezes financeira) que já tem amplo acesso à arte, ocupando o espaço que deveria ser do povo cearense.

O Cineteatro São Luiz, segundo seus vídeos institucionais, diz que conta com capacidade para mais de mil pessoas, por isso não deveria ter tido seus ingressos esgotados em minutos, especialmente com a oferta de cambistas já circulando nas redes sociais, conforme relatado no dia anterior e com prints e capturas de tela feitas por mim como comprovação. O festival poderia ter optado por uma solução mais inclusiva e coerente com sua proposta de ser público e gratuito, como múltiplas exibições ou a utilização de telões na Praça do Ferreira. Essa ideia, no entanto, poderia esbarrar em questões comerciais e de distribuição do filme.

Essa situação, embora não comprometa a qualidade da produção ou do trabalho de Kleber Mendonça Filho (uma figura ativa na democratização e na memória do cinema brasileiro), reforça a ideia de que um certo tipo de cinema é direcionado a uma parcela específica da população. O público local, que busca um acesso genuíno, foi deixado de lado, do mesmo jeito que é deixado de lado em diversas outras ocasiões, não apenas envolvendo a sétima arte.

O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho

O filme de Kleber mantém sua excelência ao propor um Brasil crítico, revisitando um passado marcado pela ditadura e por perseguições políticas que não devem (jamais) ser esquecidas. A obra conta com a coragem e atitude combativa do cineasta, fruto de muita luta e de políticas públicas, merecendo destaque e aplausos (de pé!). É uma obra que estuda um passado para projetar um futuro mais justo para todos, acolhendo toda a população, sobretudo para aqueles que sofrem diariamente (geralmente pretos e pobres) com os desmandos e as violências propagadas pela extrema-direita fascista, que ameaça um Brasil soberano, democrático e pacífico.

Quanto aos curtas-metragens brasileiros exibidos, tivemos três na mostra competitiva.

O primeiro é O Amor Não Cabe na Sala (2024), de Marcelo Matos de Oliveira e Wallace Nogueira, que conta a história de amor entre dois homens com perda da visão que enfrentam seus desafios. Embora seja ficção, o filme busca dar voz a pessoas frequentemente marginalizadas, revelando suas histórias. Ao adotar linguagem próxima do documentário, aproxima o público da trama, humanizando os personagens e possibilitando atuações marcantes, apesar do pouco tempo de um curta.

O Amor Não Cabe na Sala, de Marcelo Matos de Oliveira e Wallace Nogueira

O segundo é Canto (2025), dirigido por Danilo Daher. Apresenta a história de Débora, que precisa juntar dinheiro para pagar o aluguel e enfrenta outras dificuldades. Retrata um drama vivido por milhares de brasileiros e explora uma linguagem ficcional interessante, com planos e interpretações que transmitem essa urgência.

Por fim, Thayara (2025), de Mila Leão, traz uma reflexão sobre a identidade indígena por meio das tradições e apresentações de dança, usadas para complementar a renda. A reflexão ultrapassa a personagem, alcançando diretamente o público.


Quinta-feira, 25 de setembro de 2025 – Sexta Noite

Hoje começa a última noite de exibições, foram apresentados o curta Peixe Morto (2015), de João Fontenele, e dois longas: Ao Oeste, em Zapata (2024), de David Beltrán i Mari, e Um Cabo Solto (2025), com direção de Daniel Hendler.

Nesta noite, é possível fazer um balanço geral do festival, que apostou, por meio da curadoria de curtas e longas, em uma linguagem mais documental e tom combativo, principalmente diante das injustiças e do cotidiano latino-americano. A obra de João Fontenele aposta em narrativa própria do cinema contemporâneo, focando no presente, não no que antecede ou sucede. Nesse sentido, o filme consegue desenvolver bem as relações das personagens, que considero seu ponto forte.

O documentário Ao Oeste, em Zapata desponta como favorito, contando uma história comovente de uma família, com cenas e fotografia exuberantes, filmadas em um pântano, além do drama familiar que move a segunda parte da narrativa.

Ao Oeste, em Zapata, de David Beltrán i Mari

Por fim, o longa de ficção Um Cabo Solto apresenta uma espécie de fuga, remetendo a filmes policiais, mas com uma roupagem latino-americana, principalmente ao retratar pessoas e paisagens da Argentina e do Uruguai, em uma obra, ao mesmo tempo, é misteriosa, conta com atuações carismáticas e cenas particularmente engraçadas, um bom exemplo do filme é que não sabemos bem o motivo da fuga do personagem, podemos apenas inferir por meio dos diálogos e de suas ações, o que acaba, por vezes, gerando graça quando, por exemplo, o personagem sem jeito algum sobe ao palco para cantar uma música enquanto distrai seus perseguidores.

Acredito que o último dia entregou, por meio das obras, a mensagem que a curadoria deseja passar: um olhar forte para a América Latina, seus costumes e tradições, e a capacidade de contar boas histórias, feito que o Cine Ceará realiza e valoriza há 35 anos. Não sendo este o encerramento do meu texto geral, cabe um viva ao cinema latino-americano e sua resistência, principalmente em tempos difíceis de luta e posicionamento político contra uma extrema-direita com teor fascista que assombra o continente.


Sexta-feira, 26 de setembro de 2025 – Encerramento

Encerramento do 35º Cine Ceará

Este último dia de festival é dedicado à celebração; os filmes exibidos na semana anterior se reúnem no palco para receber seus merecidos prêmios. Destacam-se o já (e agora ainda mais) aclamado Eco de Luz e o curta Boi de salto, que receberam os prêmios do Júri da Crítica Abraccine e Aceccine com as seguintes justificativas: 

Boi de salto: “Pela autenticidade e ousadia de representar a tradição do boi bumbá do Nordeste, através da linguagem cinematográfica que transita entre a ficção e o documentário.” e Eco de Luz: “Pela linguagem simbólica do cinema, pelo uso das memórias familiares, que representam vestígios e violências da colonização da América Latina.”

Também merecem destaque Ao Oeste, em Zapata e Um Cabo Solto, premiados em categorias importantes como direção, fotografia e atuações, respectivamente, pelo Júri Oficial. Diversas outras produções, tanto da mostra principal quanto no Olhar do Ceará, receberam destaques e prêmios.

Morte e Vida Madalena, de Guto Parente

Para encerrar a noite, o festival exibiu o inédito Morte e Vida Madalena (2025), o mais recente filme do cineasta Guto Parente, com equipe e elenco excepcionais, que envolveram não só o cinema, mas também o público, jornalistas e jurados. Foi a escolha certeira para concluir um festival tão belo e esperançoso, enraizado na cultura cearense e cada vez mais necessário em tempos de crise da democracia.

Encerro meu texto com: Um viva ao Cine Ceará, pela resistência e coerência ao longo dos anos. Um viva ao cinema cearense, complexo e humano, como todo filme deve ser.


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