Corpo Aberto – Histórias de afetos, descobertas e encontros entre ruas e manguezais

Com 19 minutos e 32 segundos de duração, Corpo Aberto (2024) é um curta-metragem ambientado em Guaratiba, no Rio de Janeiro, dirigido e roteirizado por João Victor Borges e Will Domingos. A obra explora relações humanas, amores e saudades, percorrendo ruas, vielas, manguezais e a orla local, e perpassa assuntos importantes como a evasão escolar entre pessoas LGBTI+ e a insegurança financeira que impactam suas vidas. O romance entre um professor e seu namorado; a antiga paixão de Cadu (Gabriel Henrique Guedes), um vendedor ambulante, por Guta (Isabel Figueira), uma garota da comunidade que hoje vive com a namorada Bea (Flaviane Damasceno); e a relação de intimidade, amizade e flerte entre Cadu e seu amigo e primo Yuri (Tomás Braune).

Quando o roteirista também dirige, o cuidado com falas, cenas e enredo é notório. Ter a direção e o roteiro divididos entre duas mentes pode tanto salvar quanto matar o projeto. Em Corpo Aberto, essa escolha foi acertada, deixando um gosto e um desejo de “quero mais”, como se a história pudesse se expandir para uma websérie ou até um longa.

A construção do roteiro, em obras com muitos personagens que se inter-relacionam em diferentes ambientes e situações, exige uma boa habilidade na narrativa coral, para evitar lacunas nas cenas e, principalmente, alcançar a verdadeira verossimilhança. João Victor Borges e Will Domingos construíram esse coral de personagens de forma satisfatória, deixando a obra coesa e envolvente.

A escalação do elenco demonstra uma preocupação em garantir a presença de corpos negros, gordos e com pelos — corpos que rompem com a hegemonia das grandes indústrias audiovisuais, que frequentemente promovem um ideal: branco, magro, sem pelos e de padrão europeu. Diferente desse modelo, Corpo Aberto valoriza a pluralidade, apresentando corpos que refletem a realidade: pretos, brancos, amarelos, com ou sem pelos, gordos e magros. Essa diversidade na obra audiovisual é essencial, reafirmando a importância da inclusão e da multiplicidade de existências na tela.

Trazer a questão da evasão escolar para o enredo foi essencial, funcionando como eixo central que conecta subenredos sobre diferentes realidades sociais. Em 2024, o IBGE registrou 8,7 milhões de jovens entre 14 e 29 anos que não concluíram o ensino médio. Entre estudantes LGBTI+, esse cenário é ainda mais alarmante: nove em cada dez relataram sofrer agressões verbais e 86% afirmaram sentir-se inseguros na escola — índice que chega a 93% entre pessoas trans e travestis, segundo pesquisa divulgada pela Agência Brasil (16/09/2024). Como resultado, quase metade desses estudantes faltou às aulas por medo, e 18% dos jovens trans perderam seis dias ou mais em apenas um mês. A violência cotidiana acaba por expulsar esses corpos da escola e reforçar o ciclo da exclusão.

O cuidado entre fotografia e roteiro se evidencia nas cenas de carinho, beijo e carícias entre o professor e seu namorado. No interior do carro, o contato de corpos e peles revela uma interação marcada pela química entre os dois. A fotografia se dedica a traduzir o desejo aliado ao prazer, utilizando enquadramentos que ressaltam o rosto, o peito e o pescoço. Dessa forma, a relação é transformada em imagem de maneira sensível e eficaz, transmitindo com beleza o que a cena necessita expressar.

Esse artifício utilizado pela direção, em conjunto com a fotografia e o roteiro, comprova que, para falar de sexo ou retratar uma cena sensual, não é necessário recorrer à nudez. Afinal, toda nudez, quando aparece, carrega um propósito específico. Em Corpo Aberto, apesar do título sugerir exposição física, o “aberto” se revela em outro campo: o da identidade, do autoconhecimento e da metáfora. É nesse sentido que a obra propõe uma complexidade maior — a de se ter um corpo aberto no plano simbólico, e não apenas no físico.

O preenchimento do cadastro de Yuri no portal da empresa Vila Tupi evidencia, de forma simbólica, os obstáculos que jovens com mais de vinte anos enfrentam para avançar na escolarização. Ao registrar “Ensino Médio”, o curta traduz em imagem a distância entre o desejo de ascensão e as barreiras estruturais que dificultam o acesso e a permanência na universidade.

Em seguida, a cena em que o professor questiona os alunos sobre interpretação de texto evidencia a evasão escolar: o curso, iniciado com 15 alunos, hoje conta apenas com três estudantes, mostrando o impacto da desistência ao longo do tempo. A identificação dos alunos com as imagens do livro de história evidencia a exploração histórica e o desejo de independência. Mostra que as correntes ainda existem — não apenas físicas, mas sociais — que continuam a restringir a liberdade das pessoas mesmo mais de 500 anos após a chegada dos portugueses.

O cotidiano de  Yuri em busca de emprego se revela em pequenos gestos, quase como um ritual silencioso: ele abre a torneira, escova os dentes, pega o ônibus de madrugada, entra no metrô, dorme imóvel dentro do vagão e, finalmente, caminha pelas ruas da cidade. Cada ação se desenrola numa sequência clara, mas a câmera insiste em retratá-lo parado em cada quadro. Enquanto o mundo ao redor pulsa — o som do transporte, passos apressados, ruídos da cidade —, ele permanece estático, criando um choque perceptivo. O movimento da cidade contrasta com sua imobilidade, e é nesse contraste que se manifesta a solidão, a vulnerabilidade e a intensidade silenciosa de sua rotina, perturbando o espectador de maneira quase poética.

No retorno para casa, o trem apresenta um problema e todos precisam recorrer ao ônibus. Yuri, no entanto, não consegue pagar a passagem e pede dinheiro ao primo. Nesse gesto simples, se revela a relação entre os dois: uma intimidade natural, marcada por trocas, diálogos e compartilhamento. Ao longo do curta, essa relação vai se desenrolando, mostrando-se muito mais do que um vínculo familiar; há cuidado genuíno de um para com o outro, uma afeição que se constrói nos detalhes cotidianos. Essa relação percorre o filme como uma linha delicada, culminando no final em um momento de grande intimidade entre Caio e Yuri, uma cena de beleza singela na qual qualquer traço de masculinidade frágil desaparece, revelando a profundidade e a sensibilidade da conexão entre eles.

O namorado do professor chama-se Ângelo (Alexandre Amador), que trabalha como guia nos mangues. Observar as raízes emergindo da lama em direção ao sol, enquanto acima se espalham as folhagens verdes contra o céu azul, é contemplar o próprio ciclo da vida. É impossível assistir a essas cenas sem reverenciar Nanã, orixá das águas paradas, da lama e da ancestralidade, considerada a mais velha dos orixás, ligada à criação da vida a partir do barro e ao retorno à terra após a morte. Simboliza sabedoria, memória e o ciclo vital. 

Nanã. Saluba Nanã! Salve a Senhora do Poço, da Lama.

A relação do mangue com os enredos do curta revela o caos da vida e as múltiplas lutas dos seres pela sobrevivência — seja financeira, social ou amorosa —, mas também a potência do ato de se renovar. No momento em que o professor e Cadu conversam nas escadas da subida do morro, o diálogo evidencia a realidade da evasão escolar, as fragilidades sociais e o papel fundamental do professor ao ouvir, aconselhar e acolher seus alunos.

O ato de sobreviver financeiramente de Cadu encontra expressão na própria composição da cena, construída pela fotografia de João Victor Borges, pela direção de arte de Will Domingos e pelas atuações consistentes de Lucas Inacio Nascimento e Gabriel Henrique Guedes. A paleta cromática e o uso do espaço revelam-se determinantes: o verde intenso das bananeiras, os muros brancos que funcionam como contraste, o lodo esverdeado que remete à precariedade, o azul do mar que amplia o campo visual e a camisa de Cadu que, integrada a esses elementos, atua como ponto de equilíbrio. Cada detalhe cumpre uma função narrativa, reforçando o vínculo entre estética e conteúdo. Quando um projeto reúne uma equipe comprometida, capaz de dominar recursos técnicos e compreender o espaço em que atua, a cena deixa de ser mera representação para se tornar uma experiência de verdadeira satisfação visual.

Cadu deixa evidente seu ciúme por Guta, revelando a complexidade existente entre os dois: um sentimento não resolvido, uma relação não finalizada ou sequer dialogada. Seu olhar e suas falas deixam transparecer a limitação em compreender que artistas também trabalham. Ao dizer para Guta — jovem bissexual, compositora e artista — que “somente ele trabalha”, Cadu expressa não apenas uma visão pessoal, mas um reflexo de uma mentalidade social mais ampla. Não é um privilégio de Cadu desvalorizar a dedicação artística: trata-se de uma herança coletiva de uma sociedade que raramente reconhece o esforço de artistas iniciantes, locais e periféricos. Para muitos, “ser artista” ainda é algo restrito ao estrangeiro, ao que passa na televisão ou ao universo dos influenciadores digitais.

Bea e Guta, ao mergulharem na piscina da casa da patroa, protagonizam um dos momentos mais divertidos e significativos do curta. O gesto, à primeira vista leve e despretensioso, carrega um peso simbólico: trata-se de uma reapropriação social e cultural, uma pequena revanche contra séculos de exclusão que relegaram corpos como os delas a permanecer sempre à margem do privilégio. A água, que deveria refrescar a todos, é historicamente restrita a poucos; ao se jogarem nela, as meninas não apenas se divertem, mas inscrevem seus corpos num espaço que nunca lhes foi concedido.

Esse instante remete inevitavelmente à cena de Que Horas Ela Volta? (2015), quando a personagem de Regina Casé, empregada doméstica de uma família de elite, ousa entrar na piscina dos patrões e, em êxtase, liga para a filha para compartilhar a conquista. Em ambos os casos, o que poderia parecer banal — nadar, rir, brincar — torna-se ato político, pois escancara a desigualdade cristalizada no cotidiano brasileiro.

Mais adiante, quando Bea e Guta correm pela vegetação, a fuga assume contornos cinematográficos que evocam Thelma & Louise (1991). Há, nesse deslocamento, uma fantasia de libertação, uma recusa a aceitar passivamente os limites que a sociedade lhes impõe. Ainda que a realidade imponha barreiras concretas, o gesto de correr, de escapar, de rir e sonhar, ressignifica seus caminhos.

Assim, o curta não apenas diverte: ele expõe a tensão entre a precariedade da vida das personagens e sua potência de resistência. Entre mergulhos e fugas, Bea e Guta constroem uma retratação histórica e cultural que mistura crítica social e desejo de emancipação, deixando ao espectador a sensação de que cada riso delas é também um ato de insurgência.

O curta se preocupa, a todo momento, em manter uma narrativa coral coerente, alternando os tempos de cena dos personagens e preservando duplas com diálogos e interações de qualidade. Cada cena é cuidadosamente conduzida, revelando um trabalho bem executado que faz com que o espectador deseje intensamente a continuidade da história — seja na forma de uma web-série ou simplesmente tenha uma continuação.

Yuri e Cadu cortam limões, legumes e verduras na cozinha. Durante o preparo, a conversa se volta para Guta. Yuri comenta, questionando, se Cadu gosta dela. Ele nega, lembrando que os dois só ficaram uma vez. Cadu mantém um distanciamento perceptível em relação a Guta, e a voz falha levemente ao falar, revelando sua insegurança. Ele afirma que não está preso a ninguém e confessa nunca ter ouvido as músicas dela.

O professor e seu namorado nadam na praia próxima ao mangue, conversando sobre a possibilidade de morar juntos, pescar seus próprios peixes e compartilhar a vida cotidiana. Assim como nas cenas anteriores, a composição visual é cuidadosamente construída: a água que envolve o corpo, o movimento das ondas, a luz refletida na superfície e a vegetação típica do mangue criam uma estética sensível que traduz intimidade e naturalidade. Cada enquadramento e cada gesto reforçam a coesão narrativa e a delicadeza da relação, demonstrando que a atenção à fotografia, à direção de arte e às atuações mantém o padrão de qualidade que caracteriza todo o curta. Essa mesma atenção se reflete em cenas como a de Yuri e Cadu, que mantêm uma troca de olhares enquanto comem, riem e conversam sobre atrasos para o trabalho e a complicação do transporte público carioca. A montagem realiza transições que valorizam a região, mostrando não apenas praias ou pôr do sol, mas a comunidade em sua realidade: casas sem reboco, cachorros caramelo andando pelas ruas, o cotidiano e o caos das periferias. O curta, assim, visibiliza os corpos periféricos e retrata a vida na favela de forma genuína, sem apagamento urbano, mantendo a sensibilidade e o rigor visual que atravessa toda a narrativa.

Após o almoço, temos a cena de Cadu e Yuri, sentados próximos um do outro, nus, olhando a tela de um notebook enquanto se masturbam assistindo a um filme pornô bissexual. Esse momento sensual e sexual entre os dois provoca no público o questionamento sobre o que acontece depois, deixando espaço para reflexão sobre intimidade, desejo e a continuidade da relação.

A batida do som na cena final, onde todos os alunos estão no projeto ouvindo possivelmente a música de Guta, dançando e batendo palmas, cria o verdadeiro encerramento do curta. Ao mesmo tempo, deixa um vazio em quem assiste, despertando a vontade de saber o que acontece depois com os personagens. Talvez resida aí a maestria da obra: não nos dar todas as respostas. Ainda assim, é algo que, com certeza, vai martelar na cabeça do público por algum tempo.


Henrique Garrel

Umbandista, graduado em Letras Português/Francês pela UECE, atua como produtor cultural e audiovisual na produtora Vesic Pis, com foco em diversidade, inclusão e formação de público. Associado à APAN (Associação de Profissionais do Audiovisual Negro) e integra o Comitê Técnico de Políticas Culturais para a população LGBTI+ do Ceará.


Este texto faz parte da cobertura do 19º For Rainbow – Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual e de Gênero, realizada pelo Só Mais Uma Coisa.


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