Cidade by Motoboy – Entre desigualdades e afetos, a vida dos entregadores urbanos

Uma obra audiovisual é fruto do trabalho colaborativo de diversos profissionais que se dedicam à construção cuidadosa de uma narrativa. No curta Cidade by Motoboy (2023), percebemos um trabalho pautado no equilíbrio, na análise, na pesquisa e, sobretudo, na essência. Não se trata de uma obra feita ao acaso ou apenas para competir em festivais; é um audiovisual com mensagem, propósito e que cumpre com excelência o que se propõe a realizar.

O Brasil possui atualmente mais de 34 milhões de motocicletas, um número dez vezes maior do que o de veículos de passeio. Segundo dados da FGV Transportes, mais da metade dessa frota é utilizada para o trabalho, em 2025. Esse cenário reflete o crescimento do uso das motocicletas como ferramenta de sustento, especialmente em atividades ligadas a aplicativos de entrega.

No entanto, casos de violência e ameaças contra entregadores não são raros. Apenas em 2024, a empresa de delivery iFood registrou mais de 13 mil denúncias de agressões e ameaças contra seus entregadores em todo o país. Foram exatamente 13.576 denúncias desde janeiro, sendo que, nos primeiros seis dias de março, já haviam sido contabilizadas 810 ocorrências do tipo, segundo reportagem da CNN Brasil.

Trabalhar com temáticas polêmicas, sensíveis, políticas ou que possam transformar a sociedade — ou ao menos atravessar essa possibilidade — é sempre muito desafiador. Acrescenta-se a isso a necessidade de abordar essas questões com delicadeza e sutileza. A diretora Mariana Vita consegue fazer exatamente isso no curta, com roteiro de sua autoria em parceria com Denis Augusto

Em 15 minutos de tela, somos apresentados ao cotidiano dos trabalhadores de entrega, que, independentemente do horário, circulam pelos corredores da cidade. O momento em que o entregador abre o portão de casa, realiza o rito de limpar a moto e, em seguida, a música “Cotidiano”, do compositor e cantor Rincon Sapiência, começa a tocar — como se fosse uma prece enquanto o personagem pilota sua moto pela noite — constitui uma introdução real, viva, sem adornos, fantasias ou exageros, da realidade que se repete em São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e em todo o Brasil.

A direção de fotografia, assinada por Denis Augusto, com o apoio do gaffer Sasá Carvalho, demonstra cuidado e sensibilidade com o roteiro e a direção de arte. Do início ao fim, os enquadramentos e ângulos são construídos com precisão, reforçando a narrativa e a estética da obra. As ruas vazias, enquanto João pilota, revelam a liberdade de serpentear pelos diversos caminhos, mas também a solidão feroz de exercer esse trabalho sozinho. Em outro momento, vemos a sogra de João, dona Rita, em seu ponto comercial preparando tapioca de maneira artesanal, peneirando a goma com cuidado. Paralelamente, a interação entre os entregadores — comendo, conversando, rindo, vivendo — mostra que a família pode ser formada por amigos, colegas e pessoas que estão ao seu lado nas mais diversas situações, se apoiando antes das 10 a 12 horas de trabalho. 

Mais uma vez, destaco o trabalho de Mariana Vita na direção e no roteiro, em parceria com Denis Augusto. Retratar temas sensíveis à sociedade exige pesquisa, conhecimento e imersão na realidade mostrada, para que a obra não se torne descontextualizada, desrespeitosa ou, principalmente, falsa. No curta, questões como racismo, direitos trabalhistas dos motoboys, rede de apoio e relacionamentos aparecem de forma integrada e sensível, revelando nuances e conexões entre elas sem recorrer a estereótipos ou simplificações.

O racismo, muitas vezes velado, manifesta-se por uma branquitude que afirma: “Não sou racista, tenho até amigo preto; ou melhor, meu bisavô também era assim, mais escurinho”, que não entende ou não quer entender que essas falas são uma agressão e que nem toda violência é física. O ato racista ocorre quando a mãe, ao sair do elevador com dois filhos e uma amiga, vê o entregador negro na portaria e, de forma discreta, acena rapidamente para que a filha se afaste do “corpo estranho” presente no ambiente. Esse gesto, aliado ao olhar, em frações de segundos passa despercebido para muitos, mas não para quem já sofreu discriminação. 

O olhar refinado ao retratar o trânsito caótico — a aparente harmonia entre carros e motos parados, aguardando o semáforo abrir — funciona, ao longo do curta, como uma preparação, um respiro antes das ações que se desenrolam em seguida. O enquadramento que mostra a pequenez de João diante da enorme casa localizada em um condomínio fechado explicita, de forma simbólica, a luta de classes entre oprimido e opressor. A firmeza e a precisão do roteiro e da direção, que após esse enquadramento seguem com a cena em que o cliente se recusa a aceitar a pizza após um atraso de 1h40, evidenciam a culpabilização do entregador por uma situação que não lhe cabe.

O momento ocorrido na cena descrita  explicita a realidade de exploração vivida pelos motoboys. No dia 31 de março de 2025, em São Paulo e em outras 60 cidades brasileiras, ocorreu um ato que integrou o “Breque Nacional”. A principal demanda dos trabalhadores era o aumento da taxa mínima por corrida, de R$ 6,50 para R$ 10. Além disso, reivindicavam a elevação do valor pago por quilômetro rodado — de R$ 1,50 para R$ 2,50 —, a definição de um raio máximo de 3 quilômetros para entregas feitas de bicicleta e o pagamento integral por corrida, mesmo quando pedidos são agrupados na mesma rota. Os dados em São Paulo são alarmantes: apenas na capital, as mortes de motociclistas cresceram cerca de 20% no último ano, segundo levantamento do Departamento Estadual de Trânsito (Detran). Foram 483 mortes registradas em 2024, contra 403 em 2023, conforme divulgado pelo portal Brasil de Fato.

A montagem, realizada por Mariana Vita e Fernanda Scudeller, mantém uma linearidade audiovisual, sabendo com precisão quando cada cena deve aparecer na tela. A iluminação de Sasá Carvalho, por sua vez, consegue transpassar a angústia e aflição de João no momento em que ele reflete sobre a situação vivida no aplicativo.

A relação entre João e Robson se desenrola ao longo de todo o percurso narrativo, revelando-se como uma relação madura entre dois homens cis, negros, periféricos e trabalhadores aparentemente autônomos. Diversos recortes sociais atravessam seus corpos, evidenciando as múltiplas camadas de suas experiências. Os atores Jorge Neto e Dante Preto apresentam uma interação intensa, em que o diálogo se dá tanto de forma literal quanto corporal. A transição emocional de Jorge Neto, na pele de João, ao longo de todo o curta, revela preparo, entrega e profundidade na construção do personagem. O apoio emocional entre eles se mostra de forma constante, especialmente nas mensagens trocadas e no momento em que João chega à lanchonete após todas as entregas. Ali, muitas vezes, não é preciso falar: o corpo e o olhar comunicam. Estabelece-se uma conversa silenciosa que acalenta tanto o corpo maltratado quanto a alma ferida.

Na densidade da cena final, João não diz nada, mas Robson percebe, pela vivência compartilhada, que alguma entrega não ocorreu como deveria. Seu gesto de acalanto transforma-se em um porto seguro, evidenciando que ele é a rede de apoio constante do namorado, transbordando cumplicidade, carinho e afeto. Posteriormente, alguns beijos e abraços são trocados, e a profundidade do olhar entre eles — com a noite terminando e a manhã surgindo — deixa claro que o trabalho realmente acabou, mas que amanhã a mesma luta recomeçará.


Henrique Garrel

Umbandista, graduado em Letras Português/Francês pela UECE, atua como produtor cultural e audiovisual na produtora Vesic Pis, com foco em diversidade, inclusão e formação de público. Associado à APAN (Associação de Profissionais do Audiovisual Negro) e integra o Comitê Técnico de Políticas Culturais para a população LGBTI+ do Ceará.


Este texto faz parte da cobertura do 19º For Rainbow – Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual e de Gênero, realizada pelo Só Mais Uma Coisa.


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