Por Natanael Silva
No horror e no cinema de monstros é muito comum a ideia de que a fera, a criatura, represente uma espécie de corrupção do indivíduo ou de um coletivo. Vamos de Drácula, com a corrupção do sangue pelo oriente, temos o lobisomem sendo o radical da bestialidade humana e etc. etc. e tals. Quando repensamos essa ideia do monstro para uma visão mais contemporânea e levando em conta as vivências de um grupo ou indivíduo, a imagem do monstro é ressignificada ou elevada à nona potência. Carne Fresca (2024) me faz pensar muito na ideia da imagem da besta, da criatura que está desnuda, com seus fluidos e sua fome literal e simbólica pela carne, o corpo do próximo, mas ao invés da ideia de uma criatura que mata por meio de uma transformação que deriva de um satélite natural, o lobisomem é uma criatura anual, o monstro é o extremo escatológico e depravado no seu viés mais etimológico.
O Carnaval é o momento onde até o mais casto dos homens se permite o prazer da carne, se permite viver sua era mais devassa. O cenário da metrópole que está lotado de pessoas, cada canto, cada beco, cada indivíduo é um ser, uma criatura, que não possui uma verdade além do que acontecer nesse período de carnaval. O corpo é um templo maculado, a culpa cristã se vai por alguns dias, as ruas da Sapucaí prontas para um desfile não importa tanto, como um dos personagens mesmo comenta “desfile eu vejo na TV depois”. A figura do lobisomem de Erom Cordeiro busca uma presa, mas não uma presa no sentido literal da coisa, mas alguém que ele possa sentir e se permitir ser a fera. Não existe ato de maior contato e união entre dois seres do que a troca de fluidos. Todo corpo sangra, todo corpo sua e todo corpo goza. Sendo o Carnaval essa pulada de cerca ética e moral, a sociedade ocidental que se nutre de uma lógica “democrática” greco-romana que cultuava o sexo, o vinho e a orgia quando o indivíduo é castrado pela culpa católica, a norma social de que entre quatro paredes é você e os seus, existe um prazer que vai além do sexo.
As ruas estão lotadas de pessoas, mas os becos, os cantos mais escuros escondem as criaturas noturnas que se reúnem em um encontro de corpos, de pessoas, de vários ninguéns que muito provavelmente não vão se falar para além do fim do ato. A prosa narrada que me lembra demais uma narração de um noir, mas ao invés da crise pessoal de um indivíduo socialmente aceito, temos a narração dos sentimentos, sensações, desejos e pensamentos de alguém que só quer liberar a fera, só quer um igual e se não um igual, talvez aquele momento de prazer que se mistura com dor, onde o sangue e suor que se misturam e venha a torná-los iguais. A lua cheia em tom vermelho é o sinal que permite toda a liberação desse eu mais selvagem, mais primitivo, mais permissivo. Suprimir o superego e permitir o id tomar de conta. Gosto como o início fala sobre um “voltar para acasa…” mas não é sobre voltar para uma casa, mas voltar a um prazer que vai além de uma foda entre 4 paredes, é entender que mesmo vivendo um ano inteiro de restrições do corpo, do sexo, do seu eu sexual, no começo do ano temos esse momento onde todo lugar e todo momento o corpo pode usar, transpirar e gozar sem culpa e se você tem culpa, tudo bem, a quarta-feira de cinzas serve para curar essa culpa católica!
Este texto faz parte da cobertura do 19º For Rainbow – Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual e de Gênero, realizada pelo Só Mais Uma Coisa.
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