Logo no início de No Céu da Pátria Nesse Instante (2025), novo documentário de Sandra Kogut, ouvimos um áudio interessante: uma resposta de uma senhora que havia sido convidada a ser entrevistada para o filme, mas que afirma aceitar o convite apenas caso a cineasta não seja uma “esquerdista”, como, segundo ela mesma, são a maioria das pessoas que trabalha com cinema no Brasil. É uma abertura inesperada, mas que me pareceu ideal para demonstrar a abordagem que Kogut teria ao tratar dos temas pretendidos no filme: a tensa campanha presidencial no Brasil em 2022, passando por primeiro e segundo turnos, e finalizando com os atos de barbárie golpistas em 8 de janeiro do ano seguinte.
Para nos levar de volta ao passado recente da política e, consequentemente, da sociedade brasileira, a cineasta escolhe acompanhar alguns personagens que ilustram a violenta polarização que circundava os brasileiros naquele momento, ou seja, tanto apoiadores do então candidato a reeleição Jair Bolsonaro, quanto de Lula, esperança da esquerda para derrotar o extremismo fascista que assolara o Brasil nos longos quatro anos anteriores. Entretanto, apesar de respeitosa ao ouvir e acompanhar com bastante paciência o lado bolsonarista, Kogut em nenhum momento tenta esconder sua posição política, algo que, ao meu ver, é acertado, já que não estamos assistindo a uma matéria de jornal e sim o ponto de vista de alguém sobre os acontecimentos daqueles meses de campanha. Desta forma fica claro com a montagem e as escolhas de perspectivas que há uma intencionalidade em mostrar aspectos de cada personagem que os coloque em posições de óbvia dicotomia quase maniqueísta, o que não é tão difícil. Enquanto o lado dos apoiadores de Lula se mostra como uma imagem de esperança e desejo de progresso, os bolsonaristas, como de costume, se mostram como fanáticos conservadores, representando um forte retrocesso. Mas é importante ressaltar que, mesmo que em alguns anos tenhamos uma enorme dificuldade de explicar aos mais jovens o nível da polarização naquele período, quem o viveu sabe que por mais estereotipados que pareçam cada uma das pessoas que compõem cada um dos “lados”, por mais exagerado que possa parecer, era exatamente naquele pé que as coisas se encontravam, um clima de rivalidade que ultrapassava até mesmo o maior dos clássico do futebol que se possa imaginar.
Além dos dois “lados” da polarização, o filme também dá um interessante foco nos bastidores de quem faz a eleição ser possível: funcionários do TSE, mesários e as brasileiríssimas urnas eletrônicas, alvo de desconfiança e desinformações por parte da extrema direita bolsonarista. Podemos acompanhar, em vários lugares do Brasil, as dificuldades de se possibilitar o direito ao voto aos cidadãos de todo o país, como em uma comunidade ribeirinha na Ilha de Marajó, no Pará, por exemplo. O sentimento de dever com a democracia das pessoas que trabalharam em todo o processo e que ainda precisaram lidar com as possíveis violências durante as horas de votação, contrasta com as já conhecidas imagens de depredação na Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. O medo durante a campanha do candidato da esquerda é constante, já que os apoiadores da direita são famosos por sua brutalidade e muitas vezes por portarem armas de fogo. Áreas no Rio de Janeiro dominadas pela milícia são quase como um campo minado para eleitores com peças de roupas vermelhas.
Kogut, que juntamente com Renata Baldi, assina também a montagem do longa, parece ter alguma dificuldade em costurar de forma coerente o filme, que acaba se tornando uma grande colcha de retalhos. Por outro lado, é uma montagem que parece ornar bem com a confusão de sentimentos e a tensão dos momentos que acompanhamos, e que no meu caso, me fizeram reviver tudo aquilo. Mas ainda assim, o filme é claramente um recorte da visão da cineasta, passando longe de abarcar toda a complexidade do momento, ainda mais com o pouco tempo que tivemos para olharmos com mais cuidado para ele e suas consequências. Vários aspectos, como a “guerra” das redes sociais, as fake news e o uso da máquina pública pelo então presidente Bolsonaro, são apenas tangenciados pelo documentário. É um filme de momento que, ainda que não acrescente tanto ao entendimento do espectador sobre o fato histórico retratado, serve como uma catarse, uma lembrança do quanto nossa democracia é frágil.
VEJA TAMBÉM
Apocalipse nos Trópicos – Retratos de uma teocracia à brasileira
6 Documentários e 6 Ficções para jamais esquecer a Ditadura Civil-Militar Brasileira

Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.