Apocalipse nos Trópicos – Retratos de uma teocracia à brasileira

Em 2019 a diretora Petra Costa lançava Democracia em Vertigem (2019), documentário que traz um relato bastante pessoal da cineasta sobre os acontecimentos que levaram ao Golpe de Estado de 2016 e algumas de suas consequências imediatas. O filme ganhou destaque nacional e internacional, chegando a aparecer em várias das mais importantes premiações do cinema, inclusive com uma indicação ao Oscar na categoria de longa documentário. Sua repercussão no campo da política foi imensa aqui no Brasil, já que, naquele mesmo ano, o plano de desmantelar a democracia estava em franca execução, com a posse do político de ultra direita Jair Bolsonaro após o fim do mandato do golpista Michel Temer. O filme, com informações objetivas ilustradas pelas imagens e pela narração de Costa acompanhadas de reflexões sobre o passado, o presente e o futuro do país, teve o importante papel de elucidar, para uma população bombardeada por informações falsas e notícias confusas, sobre o que estava acontecendo no lamaçal que cobria Brasília naquele momento e que se alastrava por todo o território nacional, além, é claro, de informar aos espectadores de fora do Brasil sobre tudo isso.

Agora, seis anos depois, Petra Costa lança o documentário Apocalipse nos Trópicos (2025), diretamente na Netflix, como seu antecessor. Inicialmente este novo longa parece ser uma espécie de continuação de Democracia em Vertigem, acompanhando os desdobramentos do golpe de 2016 e tudo o que vinha acontecendo até aqui desde então, mas logo nos é explicado pela própria diretora (novamente em uma narração em off) de que, apesar de sim, acompanhar alguns dos acontecimentos políticos posteriores ao que vimos no primeiro filme, Apocalipse nos Trópicos tem um foco mais específico: as influências da religiosidade e de lideranças religiosas cristãs na política brasileira nas últimas décadas.

Mais uma vez, como já poderíamos esperar conhecendo os trabalhos da diretora, temos um filme com uma forte marca de pessoalidade, com a mesma se abrindo sobre seu prévio desconhecimento sobre a profundidade do cristianismo na sociedade brasileira em toda sua História e, mais precisamente, sobre a religião cristã em si. Óbvio que, como qualquer um de nós que estudamos História do Brasil na escola, Petra Costa entendia a força que o catolicismo teve no país desde que foi trazido pelos colonizadores portugueses; sabia também, como qualquer um de nós que percorremos qualquer bairro de qualquer cidade brasileira de norte a sul, que as Igrejas Evangélicas, em suas inúmeras denominações, estavam dominando uma enorme parcela da religiosidade da população. Quanto a isso o filme tenta ser o mais imparcial possível, não fazendo juízo de valor a nada do que diz respeito ao cristianismo em si, destacando, inclusive, o quão ele tem sido benéfico para parte da sociedade em muitas situações.

Mas a diretora começa a adentrar mais uma vez um lamaçal quando chega à figuras de destaque no meio político ultra direitista e ao mesmo tempo líderes de igrejas evangélicas, como o pastor pop star Silas Malafaia, um dos maiores aliados do governo de Bolsonaro durante seu mandato e depois dele, e o deputado Sóstenes Cavalcante, líder da chamada “Bancada da Bíblia” no Congresso Nacional. Assim, o filme permeia, entre trechos de entrevistas e imagens de eventos históricos e da vida pessoal dessas figuras, não apenas os quatro anos do governo de ultra direita de Bolsonaro – com destaque a momentos chave, como a tragédia orquestrada pela má administração na Pandemia de COVID-10 e a indicação de um ministro do STF “terrivelmente evangélico” -, mas voltando também décadas antes, durante a construção da nova capital federal nos anos 50 ou no período ditatorial entre 1964 e 1985, e depois, durante a redemocratização, para tocar as raízes expostas dessa influência moral e política da religião nos governos de um país que deveria ser, teoricamente, laico.

Como no filme anterior, Petra é bastante clara, usando do recurso da narração mais como impulso à reflexão, deixando as informações principalmente com as imagens e algumas cartelas, e, mais uma vez, é nitidamente um filme feito com o intuito de desanuviar a mente de alguns brasileiros menos informados e destrinchar de forma resumida para alguns estrangeiros a complexidade das relações sócio-políticas por aqui. Não é um grande documentário, cinematograficamente falando, mas é um documentário importante, ainda mais levando-se em conta que alguns desdobramentos ainda permanecem girando na roleta da História, já que ao menos alguns dos inúmeros crimes cometidos pelo governo do ex-fungo presidencial Jair Bolsonaro parece que terão consequências reais muito em breve. Porém, ainda assim, é praticamente impossível pensarmos a política do Brasil distanciando-se das resistentes amarras da religiosidade – pois o cristianismo está na estrutura cultural da sociedade brasileira -, mas principalmente da cobiça venenosa de autodenominados líderes religiosos, que se utilizam maquiavelicamente da subserviência espiritual e moral da população para manterem-se no poder, e acima de tudo, no controle.


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