Aqui – Do revolucionário ao genérico

Aqui, de Richard McGuire (2014), é considerado um dos quadrinhos mais revolucionários do século XXI. Sua origem remonta a 1989, com a publicação de uma história curta em quadrinhos (apenas seis páginas), que alcançou sua versão definitiva em 2014, expandida para mais de 300 páginas. A proposta é simples: narrar a perspectiva de um ponto fixo no espaço ao longo do tempo. O que torna a obra tão especial é a forma como o autor explora essa ideia. Utilizando-se da linguagem dos quadrinhos, McGuire apresenta sempre páginas duplas, que coincidem com um canto da casa, e, por meio de recordatórios e requadros, traça uma narrativa que vai de períodos remotos a visões do futuro.

Quando soube que a obra seria adaptada para o cinema, surgiu uma preocupação legítima: como transpor essa ideia para a linguagem cinematográfica — especialmente no contexto do cinema comercial americano — sem parecer monótono ou cansativo? A resposta foi apostar em um cineasta de renome, com um estilo autoral marcante. O escolhido foi Robert Zemeckis, responsável por filmes como a trilogia De Volta para o Futuro (1985, 1989, 1990), Uma Cilada para Roger Rabbit (Who Framed Roger Rabbit, 1988), Forrest Gump: O Contador de Histórias (Forrest Gump, 1994) e Náufrago (Cast Away, 2000). A associação de Zemeckis a um filme sobre a passagem do tempo parecia uma escolha óbvia, especialmente considerando seu histórico.

No entanto, ao ver os primeiros materiais promocionais — trailers, fotos, entrevistas, entre outros — fiquei com a impressão de que seria uma péssima adaptação, mas talvez um bom filme. Foi um completo engano. A campanha de marketing baseou-se em dois pontos: 1) a suposta inovação de apresentar uma câmera fixa para contar a história, algo que, segundo a propaganda, nunca havia sido feito na história do cinema; e 2) o uso de tecnologia de Inteligência Artificial (IA) para rejuvenecer o elenco (Tom Hanks e Robin Wright), apelando para a nostalgia dos fãs de Forrest Gump, já que ambos os atores estavam no projeto.

Esses dois aspectos são facilmente contestáveis. Contar uma história com um plano fixo não é nenhuma novidade no cinema. Pelo contrário, é uma prática que remonta às origens da sétima arte. Nos filmes dos irmãos Lumière (ainda no século XIX) e nas obras de Georges Méliès, por exemplo, o plano fixo era amplamente utilizado. Méliès, aliás, foi de fato um revolucionário do cinema de fantasia e ficção científica. Já o uso de IA para rejuvenescimento digital, longe de ser algo a ser exaltado, acende um sinal de alerta, especialmente para os trabalhadores da indústria. Não por acaso, o uso de Inteligência Artificial em roteiros, elencos e outras funções não técnicas foi uma das principais pautas das recentes greves de roteiristas e atores em Hollywood.

Superadas essas questões, é hora de falar sobre o filme em si. É preciso reconhecer o mérito da edição de Aqui (Here, 2024), que se destaca como o único aspecto realmente positivo da produção. As transições e o posicionamento dos quadros conseguem se aproximar de uma diagramação típica de páginas de quadrinhos, criando algo visualmente próximo ao que o material original propõe. Além disso, há cenas diretamente inspiradas na obra de McGuire, reproduzindo diálogos (como a piada do médico), figurinos, personagens e momentos icônicos. Contudo, as semelhanças terminam por aí.

Enquanto o quadrinho Aqui explora a resistência de um ponto fixo no espaço através do tempo, utilizando fragmentos temporais que convivem na mesma página, o filme Aqui opta por centrar sua narrativa na família do personagem de Tom Hanks, com breves histórias paralelas que carecem de conexão significativa com o espaço ou a casa em si. Parece que a produção sentiu a necessidade de construir uma trama principal, relegando as outras narrativas a papéis coadjuvantes que apenas servem para preencher o tempo de tela. Há, ainda, uma tentativa de interligar essas histórias por meio de um achado arqueológico, mas tal esforço é tão mal explorado que se torna facilmente esquecível.

Se o filme tivesse abraçado seu potencial narrativo e buscado uma interligação mais coesa entre as histórias, algo similar ao que A Viagem (Cloud Atlas, 2012), das irmãs Wachowski, conseguiu fazer, talvez o resultado fosse mais satisfatório. O filme de 2012, embora longo (2h45min) e por vezes lento, apresenta uma complexa rede de conexões. Já o Aqui de 2024, com uma duração mais curta (1h44min), não sofre com lentidão, graças à dinâmica edição, mas falha ao explorar a essência da narrativa original.

No início, pensei que Aqui seria uma péssima adaptação, mas um bom filme. No final, ambos os aspectos são decepcionantes. Primeiro, a adaptação deturpa a proposta original ao focar na família do personagem de Tom Hanks, abandonando todo o potencial narrativo de uma história sobre um ponto fixo no espaço. Segundo, o uso inadequado de recursos de Inteligência Artificial, aliado à audácia de um marketing que tentou enganar o público, comprometeu ainda mais a experiência. Para quem deseja apreciar uma boa adaptação da obra de McGuire, recomendo o curta-metragem Here (1991), de Tim Masick e Bill Trainor, disponível aqui, e o filme Quando Aqui (2024), de André Novais Oliveira.


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