O Auto da Compadecida 2 – Retornar é preciso? Não sei, só sei que retornaram

Baseado na obra de mesmo nome do escritor Ariano Suassuna, O Auto da Compadecida foi adaptado pela primeira vez em 1999/2000, como uma minissérie que depois foi remodelada e se tornou um filme. O original carrega em si toda a tradição e carisma que só Suassuna seria capaz de criar, dando vida a João Grilo, o maior mentiroso do Brasil e seu fiel companheiro, o medroso Chicó. O auto, escrito como peça (já diz no nome auto), teve inúmeras adaptações teatrais até conseguir seu espaço nas telas e foi um sucesso. Quando se vai elogiar o cinema brasileiro, ele é sempre um filme que está no topo das listas. 

Com temas cômicos, Suassuna trouxe as características de Gil Vicente com uma bela cobertura de brasilidade e que não foi ignorada pelos diretores e roteiristas Guel Arraes e Adriana Falcão. E é possível que para além da inspiração do Boca do Inferno, Auto da Compadecida traz reflexões sobre religião, morte, pecado e, claro, o jeitinho brasileiro para sobreviver. Numa época em que a  seca e a fome eram o principal amigo das pessoas, fazer de tudo por comida e prazer com muito humor e expertise era necessário. 

Quem está pedindo continuações?

Não conheço e nem pretendo conhecer alguém que não goste de O Auto da Compadecida, acredito muito que os admiradores do cinema nacional tem uma tendência a zelar e muito por essa história, seguindo o fluxo contrário aos de Hollywood, o nosso cinema costuma produzir mais histórias únicas a sequências, tanto que em 2024 foram lançados apenas Os Farofeiros 2 (2024), Nosso lar 2: Os Mensageiros (2024) e O Auto da Compadecida 2 (2024). Mesmo assim, talvez por um receio das pessoas não irem às salas de cinema, o Brasil tem seguido o plano dos estrangeiros e feito continuações de clássicos que deram certo, como: Estômago II: O Poderoso Chef (2024), Ó Paí, Ó 2 (2024), Cidade de Deus: A Luta Não Para (2024 -) – que foi lançado como série -, O Auto da Compadecida 2 e até Lisbela e o Prisioneiro 2, que foi divulgado para lançar em 2025, sem que os próprios atores do original soubessem de alguma coisa. 

Mesmo assim, quando saiu o anúncio de que João Grilo e Chicó voltariam às telas, o receio foi maior que o desejo de rever e esse sentimento não era apenas do público, como também do próprio elenco, já que passado mais de 20 anos, eles não eram mais os mesmos. O medo da memória afetiva, dos diálogos bem elaborados, do humor único e até a simplicidade que só os filmes do início do século podiam ser desfeitos numa continuação apenas arrecadatista e sem a essência de Ariano Suassuna colocou no original. 

As formas de amor – é novo, mas sem nenhuma novidade

Chicó (Selton Mello), que foi responsável por propagar a história de João Grilo (Matheus Nachtergaele) e sua ressurreição, inicia o filme estando sozinho há muitos anos. O amigo mentiroso foi embora e Rosinha (Virginia Cavendish), com quem se casa no final do Auto da Compadecida, o largou sem nenhum motivo. Chicó vive ao redor da igreja em que o amigo “desviveu” e retornou, contando numa rima e teatralidade só dele. 

Então ele conhece Clarabela (Fabiula Nascimento), filha do coronel Ernani (Humberto Martins), atriz e mimada, que vai passar um tempo no interior para se reconectar com o “poder do sertão” e Chicó com aquela cara de besta, a conquista e começa o romance secreto – que traz uma cenas divertidas e bebendo da mesma fonte de graça do humor de Suassuna. Eis que, Rosinha volta, agora independente e caminhoneira – numa energia bissexual maravilhosa, ela retorna para encontrar seu amado e entender o motivo dele nunca ter ido atrás dela. Selton Mello e Virginia Cavendish possuem uma química ainda mais forte nesse segundo filme, por serem mais velhos e casados, não tem aquele doce da falsa inocência do pré casório, apenas a urgência latente do reencontro. Rosinha não estava satisfeita em viver de golpes e histórias na cidade que cresceu e foi em busca do mundo, mesmo que fosse preciso deixar para trás o medroso homem que ama. E a melhor parte disso, é como eles entendem que a distância e o amor deles não é abalado, mesmo com outros casos e amores que ambos tiveram ao passar do tempo. Assim como Clarabela que ao entender que o amor não é tão preto no branco como nos romances e cinema, embarca na sua própria aventura de descoberta e emancipação. 

Nem tudo são flores e elogios

Aqui eu deixo dois pontos que me fizeram sair um pouco do filme, mas não estragou a experiência como um todo. Primeiramente, o fato da cidade não ser mais presente, ficando claro que é apenas cenográfico e com efeitos. Parte do carinho pelo primeiro filme vem da tangibilidade daquela mundo – a cidade de Taperoá -, e sempre que a cidade aparecia de cima ou num plano mais aberto, me tirava do filme para questionar que crime era aquele. Diferente, por exemplo, das cenas teatrais de contação de história de Chicó, feitas em animação com outros elementos deixava tudo ainda mais fantástico e fantasioso, o que combinava muito com a narração e a energia desses momentos. 

Segundamente, meu maior medo não foi concretizado em sua totalidade, mas parecia que faltou coragem para trazer novidade no terceiro ato, para além da troca de atores que faziam Jesus, Diabo e Compadecida, sendo quase um copia e cola do filme anterior. Deixando o final do filme com um gosto de apetitoso, mas não delicioso. 

Auto da Compadecida 2 respeita o legado, mas não inova

Em O Auto da Compadecida 2, João Grilo retorna a sua pacata Taperoá 20 anos depois, onde Chicó ganha sua vida contando a história do homem que morreu, encontrou Jesus e o Diabo e conseguiu uma segunda chance. É a expectativa do milagre em meio a tanta ruína. Lembrando que tudo isso acontecia entre um período ainda mais intenso de seca no interior do Pernambuco, o único que possuía acesso a um poço era o coronel Ernani, que trocava água por voto do povo e que naquele momento teria um concorrente, Arlindo (Eduardo Sterblitch), que prega trazer a modernidade aquela população, com muitos carnês.

Esse foi um ponto que encontrei de mais interessante no enredo do filme, o constante contraste entre as velhas e novas (ou falsas novas) políticas. Tanto Arlindo, quanto coronel Ernani fortalecem que a pequena cidade se mantenha na política com voto de cabresto, mesmo tendo propostas diferentes – um com água, distribuído como um salvador, mas não permitindo que mais ninguém detenha esse mesmo poderio, assim como o outro cria a necessidade do povo de comprar eletrodomésticos “como o povo da cidade” a preço e taxa que eles não entendem. 

Dentro dessa discussão também é possível considerar a alta taxa de analfabetismo daquela população e como eles eram moldados por políticas cuja as prioridades não era e não é escolarizar e educar os moradores, mas acomodá-los num regime de controle que só faz valorizar esses poderosos.

Mesmo assim, mantém a essência da comédia popular, a crítica social e o formato teatral e cordelista, a continuação honra o peso da obra de Suassuna, no entanto, quando tenta expandir esse universo fica claro o receio em se arriscar a novas coisas, resultando em um produto final que, embora fiel, falta em alguns aspectos. Os novos personagens, embora carismáticos, são rasos, dando a entender que o foco deve ser em personagens que já conhecemos, perdendo um elemento importante da obra de Suassuna, a habilidade de dar vida e conquistar o público com todos os personagens. Afinal, impossível não lembrar de “O enterro da cacorra”, que contém inúmeros personagens icônicos e que Chicó e João Grilo quase não falam, mas que a confusão e o apego a esses personagens se desenvolvem cada vez mais.  


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