No momento em que escrevo este texto faz exatamente 17 dias que assisti Ainda Estou Aqui (2024) no cinema. Tempo demais para qualquer crítico que se prese para escrever sobre um filme, ainda mais dada a importância do filme em questão. É um filme que, confesso, me deixou sem palavras, como certamente deixou muitos outros espectadores desde sua estreia, mas mais do que isso, me deixou reflexivo, como também apostaria que ficaram muitos outros espectadores ao sair da sala de cinema. Muitas vezes, quando escrevo, penso como minha forma de analisar alguns filmes é um tanto quanto heterodoxa em relação a maior parte das críticas de cinema que costumo ler. Tenho uma mania incurável de em algum momento do texto analisar não apenas a obra em si, mas o que ela me causou. As emoções que afloraram enquanto eu assistia, as coisas que passaram por minha mente inquieta naquele tempo – raro, devo dizer – em que me obriguei a permanecer sentado por tanto tempo. É comum que eu permaneça ainda mais alguns minutos após o início dos créditos, aproveitando o cochichar abafado das pessoas saindo da sala e o movimento hipnótico das incontáveis funções e nomes de pessoas e personagens, ao som de uma música que alguém pensou que seria perfeita para aquele momento. Tanta coisa passa por minha cabeça. Mas dessa vez tenho a impressão de que estou há 17 dias sentado naquela mesma poltrona da sala 2 do Cinema do Dragão, ainda refletindo à partir de vários pontos de vista sobre o que acabei de assistir.
Sim, eu sei que sou bastante exagerado. Mas acredito não estar sendo exagerado ou alarmista quando explico para as pessoas que a Ditadura civil-militar brasileira nunca acabou por completo; ou quando afirmo que nossa democracia é um frágil bebê de colo a quem muitas vezes confiamos sua segurança a quem não merece nenhuma confiança; ou quando em minhas aulas, quase aos gritos, tento fazer uma nova geração inteira compreender que algo que aconteceu apenas poucas décadas antes deles nascerem causou um mal tão nocivo e corrosivo que ainda podemos sentir várias das feridas abertas – e muitas delas bastante inflamadas. Acredito não estar sendo exagerado quando 15 dias após ter visto uma obra cinematográfica que conta uma história real sobre a maldade apontada para o rosto de uma e de várias famílias de brasileiros que ousaram não seguir “os protocolos” vejo notícias sobre um terrorista de extrema direita alinhado ao bolsonarismo que se explode em frente a sede da Justiça Federal; ouço notícias sobre um plano de militares e civis que ansiavam em assassinar presidente e vice eleitos democraticamente; e poucos dias antes havia escutado da boca de um porteiro de condomínio uma comemoração ante a vitória de um tresloucado neofascista para a presidência da autodeclarada “maior democracia do mundo contemporâneo”.
É simbólico que Ainda Estou Aqui tenha sido dirigido por Walter Salles, cineasta que fez parte de um movimento do cinema brasileiro que ficou conhecido como Retomada, que ganhou esse nome exatamente por representar um momento em que a arte cinematográfica brasileira estaria se recompondo de um período nefasto de censura e mínimo ou nenhum apoio do Estado, iniciado no período ditatorial e estendido até os anos Collor, no início da década de 1990. Salles dirige nessa época Terra Estrangeira em 1995, em parceria com Daniela Thomas, e em 1998 sua obra prima indiscutível, o tocante Central do Brasil. Após anos se dedicando a direção de curtas e longas mais pessoais o diretor decide adaptar o livro de Marcelo Rubens Paiva lançado em 2015, que conta sobre os anos em que presenciou, ainda criança, seu pai, sua mãe e irmã serem coagidos por agentes da ditadura a prestarem depoimentos sob tortura, acarretando posteriormente no desaparecimento de seu pai, Rubens Paiva, que anos depois foi tido como morto, mas que nunca teve seu corpo encontrado.
É notável como em seu primeiro terço o filme apresenta o aparente clima tranquilo vivido por aquela família de classe média alta no Rio de Janeiro dos anos 70. A praia, as risadas, os gritos de euforia pelo encontro de um cachorrinho abandonado, a correria para chegar em casa a poucos metros do mar ainda pingando água salgada misturada à areia fina dos pés descalços. O som de um helicóptero ao longe. Uma família grande, cinco filhos (e agora um cachorrinho). Uma casa grande, acostumada a receber amigos e familiares para reuniões descontraídas ou ao escritório de Rubens, que planeja a construção de uma aguardada casa na serra. É impossível não se alegrar com os diálogos entre todos, sentir o ar aconchegante de cada detalhe daquela casa. Cada palavra dita, cada movimento de corpo, é um respiro sorridente de uma família feliz.
Em meio a tudo isso Eunice, a mãe, se mostra o ponto focal do nó que amarra aquele lar, que com seriedade o protege e o vigia, mas que também o envolve com um amor quase palpável. Mas são os anos 70 no Brasil, e se você tem mais de cinco décadas de vida e/ou prestou um pouco de atenção às aulas de História, sabe que aqueles não foram tempos para felicidades neste país. Havia, sim, um arremedo de felicidade, mascarado pela censura e pelo ilusório “milagre econômico”, uma falsa felicidade criada pelo Estado militar, mas consigo imaginar o peso incessante de se tentar construir um mínimo de felicidade real naquele momento. E podemos perceber esse peso no rosto de Eunice. Impassível. Parecendo pronta a segurar o mundo inteiro nas costas para que nada atingisse aqueles a quem tanto dedica amor. E essa tensão infinita se mostra compreensível quando toda aquela pressão do contexto ditatorial invade o lar dos Paiva e como uma enchente arrasta qualquer vestígio de tranquilidade que lá poderia algum dia ter existido. Os momentos seguintes são de um desespero aterrador.
O elenco inteiro do filme está impecável, desde as crianças e adolescentes que interpretam os filhos do casal, à empregada doméstica, Maria José, sempre preocupada, interpretada por Pri Elena, todos os amigos da família e o próprio Selton Mello interpretando um Rubens Paiva que demonstra seu carinho pelos filhos, mas que nunca rouba a cena da personagem foco do filme. É impossível não suspirar de satisfação pelo tremendo acerto que foi escalar Fernanda Torres para interpretar Eunice Paiva, e é ainda mais fora de cogitação não sentir a carga de vida que a atriz entrega a um papel tão delicado, e ao mesmo tempo tão firme. Eunice é para mim um retrato de vários sentimentos que eu, com meus 34 anos, nascido em 1990, apenas consigo imaginar. É o retrato de uma luta contra um governo opressor e assassino, contra uma curta memória que parecemos insistir em ter, contra a falsa sensação de segurança, contra a angústia de um luto eterno que nunca poderá ser vencido. Fernanda Torres entrega uma atuação incomparável, de uma sensibilidade difícil até de descrever, mas podemos percebê-la no embargo em sua voz ao falar com os filhos, na sutileza de um olhar ao observar outras famílias interagindo, na teimosia em sorrir quando o que se espera é exatamente o oposto. É assustadora a força que Torres dá a Eunice, e PRECISAVA ser assustadora, pois o que acompanhamos no decorrer do filme é algo que ninguém jamais deveria ser obrigado a passar.
Decidi finalmente escrever sobre Ainda Estou Aqui pois, este foi um filme que me deixou mudo de reflexão, mas, contraditoriamente, também me deixou ainda mais ansioso de falar. Pois é preciso falar sobre o que está acontecendo, sobre o que aconteceu e sobre o que poderá vir a acontecer. Como várias e várias vezes ouvi a belíssima e ressonante voz de Gal Costa cantar em Divino, Maravilhoso: “É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte”. É preciso estar aqui! E é por isso que precisamos refletir o tempo que for preciso, mas em algum momento precisamos levantar. Levantar e gritar, e nunca se calar, pra que nunca se deixe esquecer, pra que nunca se repita.
Sem anistia para golpistas e detratores da democracia brasileira! Nunca mais!
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Zé – A gente vive pra ser livre
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.