O Quarto Ao Lado – A bravura de desistir

O Quarto ao Lado, de Almodóvar. Imagem: Warner Bros. UK & Ireland/ Divulgação

Esse texto pode conter leves spoilers de “O Quarto ao Lado”

Pedro Almodóvar nem sempre agrada – pelo menos não todo mundo. O diretor tem um talento único para abordar temas controversos e é esperado que ele cause discordância perante sua audiência. Porém, desta vez, ele conseguiu levantar uma questão sobre a qual todos devemos concordar: é sempre difícil lidar com a morte (seja pra quem vai, seja pra quem fica). Mas O Quarto Ao Lado (The Room Next Door, 2024) conseguiu trazer uma visão delicada, íntima e emocionante sobre o assunto. E de um jeito que poucas pessoas esperavam. O filme chega às salas de cinema do Brasil em 24 de outubro.

Estrelado por Julianne Moore e Tilda Swinton, o filme nos apresenta uma situação muito peculiar, mas, extremamente familiar à muitas pessoas: a decisão de desistir da vida quando se tem uma doença sem expectativa de cura. E as duas personagens, Ingrid e Martha (Julianne e Tilda, respectivamente) contemplam as duas visões dicotômicas que citei acima – a de quem parte e a de quem tem que lidar com a partida.

Martha é uma mulher por volta dos 50. Com uma carreira bem estabelecida e uma relação conturbada com a filha, a jornalista se vê desesperançosa após um malsucedido tratamento contra o câncer. Por isso, resolve encerrar a própria vida, já que se recusa a viver seus últimos dias em sofrimento. Ingrid, por sua vez, é uma escritora, antiga amiga de Martha. Ela tem sérios problemas em lidar com a morte e se coloca como testemunha dos derradeiros momentos da jornalista. Um enfrentamento que ela, de certo, não gostaria de ter.

O Quarto ao Lado, de Almodóvar. Imagem: Warner Bros. UK & Ireland/ Divulgação

Desistir pode demonstrar mais força do que tentar seguir em frente

Talvez eu não assista a um filme de Almodóvar há muito tempo. Ou pode ser que eu tenha uma visão errada de sua maneira de contar histórias, esperando um plot twist, como em A Pele que Habito (La Piel que Habito, 2011). “O Quarto ao Lado” é um filme linear que cumpre suas promessas, mesmo que o espectador espere e que tudo se resolva de outra forma. E, provavelmente, seja esta a grande surpresa.

Baseado no livro “O que Você Está Enfrentando” de Sigrid Nuñez, o filme mostra que temos uma ideia errada do que é “ser forte”. Força comumente está associada ao ato de continuar tentando, de permanecer vivo. Mas o que fazer quando não há mais esperança? Esperar definhar? Perder o controle de suas funções e depender de terceiros para cuidarem de sua higiene? De sua dignidade?

A personagem de Swinton se recusa a passar por isso e decide tomar as rédeas de sua vida – ou de sua morte – quando opta pela eutanásia de si mesma. Ela prefere a morte à uma vida de sofrimento. Afinal, já morreria de um jeito ou de outro. Para tanto, ela precisa apenas de alguém ao seu lado. Próximo o suficiente para desfrutar com plenitude seus últimos dias.

A pegadinha está no egoísmo que toma conta de nós, que permanecemos. Porque somos nós quem sofremos com a partida, não quem parte. Este se livra, “descansa”. Mas é nosso egocentrismo disfarçado de amor que nos faz desejar a “vida a qualquer custo” daqueles a quem somos apegados. Não é no outro que pensamos. É em nós mesmos.

Martha tomou a mais difícil das decisões: ela resolveu que seria ela quem escolheria como, quando e onde partiria. Ela, não sua doença! O que muitos encararam como covardia, me parece um ato de bravura!

O Quarto ao Lado, de Almodóvar. Imagem: Warner Bros. UK & Ireland/ Divulgação

O Quarto ao Lado fala de vida e morte, mas também de amizade feminina

Parece redundante dizer que Almodóvar gosta de contar histórias de mulheres fortes e determinadas. Aqui, em um olhar mais raso, pode parecer diferente, dada a delicadeza com a qual os temas são abordados. Mas, para além do tema principal que conta a história, “O Quarto ao Lado” é um filme sobre a amizade entre 2 mulheres que não se viam há anos e se reencontram nesse momento de desesperança. Um momento em que o que menos queremos é nos sentirmos sozinhos. E essa é uma camada essencial do filme.

Retratar relações não é novidade para o diretor. Mas, sendo este seu primeiro filme de língua inglesa, escolher contar a história de duas mulheres, neste contexto, pode ser um desafio. Nada que Pedro não consiga fazer de forma exuberante! Marthe e Ingrid estão em momentos da vida em que suas preocupações não são romances, casamentos ou essa afetividade água-com-açúcar onde Hollywood comumente coloca as mulheres.

Elas não são rivais, antagonistas, não disputam o mesmo par romântico e tampouco têm inveja da beleza uma da outra. A escritora e a jornalista não se encontravam fazia muito tempo, mas, tendo a vida lhes juntado numa fase tão complicada (principalmente para Martha), a amizade entre as 2 aflora novamente. Uma demonstração de empatia e sororidade que poucas vezes podemos contemplar. Mostrada de forma singela e pautada pelas abdicações de uma para com a outra.

Não há complacência de Ingrid em relação à Martha. Pelo contrário! Relutante no início, a escritora tenta argumentar com sua amiga sobre o valor da via, de seguir em frente. Ainda assim, permanece fiel e cumpre sua promessa, se abrindo apenas com um amigo que teria sido um affair em comum das 2 no passado. E ela segue “segurando a mão” da amiga até o desfecho da história.

O Quarto ao Lado, de Almodóvar. Imagem: Warner Bros. UK & Ireland/ Divulgação

Cenário fascinante e críticas atuais

Pedro Almodóvar é aficionado por fotografia, moda e espaços que enchem nossos olhos. Não é novidade para quem acompanha o trabalho do diretor. O quarto que dá nome ao filme é parte de uma casa localizada no meio de uma floresta (filmada nos arredores de Madrid). Martha a teria alugado por um mês para que as duas pudessem ter seus momentos de paz no que seriam seus últimos dias. É impossível não perceber a fotografia calmante do filme. Cenários amplos, iluminados, que contrastam com a dor, por vezes perceptível, da personagem doente.

O figurino é quase uma figura a parte. A aparência andrógina de Tilda Swinton é muito bem aproveitada, mesmo que não haja um propósito em si. Mas sua aparência pálida, muito característica da atriz, nos faz acreditar na realidade da personagem com facilidade. Não que sua atuação já fosse capaz.

E, claro, arrisco dizer que não haveria escolha mais acertada para Ingrid do que Julianne Moore. Suas expressões de compaixão e lucidez dão o tom perfeito para os diálogos corajosos que a história pede. Sem contar que a trama tenta debater mais do que seu plote principal sugere.

Para tanto, contamos com Damian, interpretado pelo talentosíssimo John Turturro, um cientista ambiental que critica fortemente a descrença na ciência, a crise climática e a ascensão da extrema direita. Almodóvar aproveita nossa atenção para pincelar questões do nosso tempo. Uma tentativa ousada de chamar atenção do público de língua inglesa. Mesmo que estes assuntos não tomem tempo de tela suficientes para estarem em uma camada mais externa, eles estão presentes o bastante para não passarem despercebidos.

O Quarto ao Lado, de Almodóvar. Imagem: Warner Bros. UK & Ireland/ Divulgação

Ai, Gabi, só quem viveu sabe!

Neste ponto acredito ser válido contar minha experiência. Anos atrás meu esposo faleceu em decorrência de um câncer. Entre a descoberta da doença e seu falecimento, decorreram 6 meses. À época, nos parecerem longos 6 meses. E com razão! Todo período é longo quando estamos em sofrimento.

Em seus últimos momentos, fui alertado pelo médico que Marcos não sobreviveria a mais um dia. Ele orientou que me despedisse. O que interessa para esse desabafo é que, nesta despedida, disse ao Marcos (na UTI) que, se ele não aguentava mais, se ele estava cansado de lutar, se ele entendia que era o momento de partir, então que ele largasse mão. Eu o apoiaria como sempre o fiz.

Eu estava cansado de vê-lo sofrer de um jeito que só seria superado pelo cansaço dele mesmo. Marcos abriu os olhos enquanto eu falava. Foi a última vez que nos vimos.

Tendo passado por tal situação, foi impossível não ser afetado pelo filme. Desde o momento em que Martha proferiu seu desejo de tirar a própria vida, eu desejei estar no lugar da Ingrid para poder dizer-lhe que eu entendia seu desejo. E estaria do seu lado nessa decisão porque sei bem pelo que ela estava passando.

Não posso garantir que quem esteja lendo este texto vai ser afetado da maneira como fui. Mas o olhar tão sensível de Almodóvar para o tema me tocou de tal forma, que ainda me emociona lembrar da história de Martha.

“O Quarto ao Lado” foi premiado no Festival de Cinema de Veneza com o Leão de Ouro, tem 1h47m de duração e conta com 90% de aprovação no site dos tomates. Este autor recomenda fortemente a experiência.


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