Mãe – Dá trabalho sonhar sem medo

Não ame o sono,

senão você acabará ficando pobre;

fique desperto, e terá alimento de sobra.

(Provérbios 20:13)

A relação entre a imagem do cinema e a experiência do sonho é complementar. Talvez até codependente. Ao falar de um sonho, tenta-se, na maioria das vezes, visualizá-lo e descrevê-lo como um filme, em uma espécie de encadeamento de imagens e sons ou acontecimentos, ainda que, é claro, os sonhos existam antes dos filmes. Não se sabe se sempre sonhamos em forma de filmes ou sempre os fizemos em forma de sonhos. O fato é que para sonhar, é necessário dormir, é preciso o ócio. Mãe (2023), de alguma forma, parece funcionar como a exposição do elo entre esses dois universos, o cinema e o sonho, e sua existência mútua.

No curta dirigido por Natália Tavares, o que se acompanha é o dia-a-dia de um menino, Luís (Guilherme Alves), que trabalha incansavelmente a mando de sua mãe (Zuleika Bezerra) fanaticamente religiosa, em um povoado interiorano de Pernambuco, que anda perdendo seus homens por algum mistério. Ambos, no entanto, têm comida na mesa e a esperança de um suposto retorno para mover seus dias, e isto, para a Mãe, é o suficiente, mas não para seu filho. Como qualquer criança, os desejos pelas brincadeiras, o tempo livre, o contato humano, seja pela paixão ou pela agressão, são constantes para Luís, que tem apenas a venda dos queijos caseiros na estrada para preencher seus dias. Ele não trabalha e nem testemunha o estranho fenômeno de seu povoado sozinho, mas acompanhado de Seu Cícero (A.C. Coêlho de Assis “Coelhão”), o único outro homem adulto no filme que vemos trabalhar e não desaparecer. Em meio a rotina castradora e a incerteza do mistério sem explicação da região, Seu Cícero existe como uma saída, com a leveza de ver a vida como o equilíbrio entre o trabalho e o descanso, estimulando o garoto a quebrar as regras. As noites inquietas vão acontecendo com mais frequência e a presença sinistra e punitiva da figura misteriosa ganha mais forma nas imagens. O verdadeiro mal, diferente daquele contado pela mãe, vai ficando cada vez mais nítido

Até certo ponto, cada sequência que vemos tem a presença direta ou próxima de Luís, com exceção da primeira cena que é seguida, justamente, de Luís acordando. Sua presença no espaço e seu ponto de vista guiam a narrativa mais do que o mistério em si, mas não apenas estas coisas. Suas ações giram ao redor da dedicação ao trabalho, a mais sagrada e decisiva atividade para a aproximação com o divino e a proteção contra o pecado, instituídos pela mesma que cobra as tarefas. O ócio e o descanso são, então, a ruptura contra a assombração e contra a própria estrutura do filme. Para além das mudanças de atitude de Luís em relação à rotina pesada e à passividade em que ficava com os outros, ocorrem momentos decisivos para o desenvolvimento do suspense no filme, quando Luís dorme e sonha. Têm-se uma visão privilegiada da figura de preto e suas ações quando Luís vai dormir após os pecados terem sido confessados, e edições rápidas de cenas que ainda estão por vir, um embaralhamento no tempo do filme, ocorrem nos sonhos desse sono. Os sonhos de uma criança em um ambiente violentado pela obrigação da servidão e do ofício, que fazem acontecer os elementos do gênero, o movimento da montagem, um filme em si. 

Uma sina pela outra. A assombração de Mãe é, no final das contas, fruto de uma dualidade estranha e mal resolvida. Não só a imagem sonhada contra a imagem projetada, mas também o bem contra o mal, como prega o evangelho que persegue os personagens.  Inconsistências de uma conduta da servidão completa ao trabalho e a da abdicação das obrigações de sua vida. O que seria, afinal, usar de tanto afinco a obsessão pelo esforço extremo do trabalho para se afastar dos prazeres da carne, se o mesmo lhe leva a consumir a própria carne como o pão de cada dia? Ou então os sacrifícios de nada servem? Supõe-se que tal questão da história é algo que alguns verão sentido e outros não. Como o suposto retorno tão esperado ao final, é uma imagem que nem todos podem ver, apenas na completa loucura. Nem todos podem ser arrebatados, apenas pelo completo terror dominando os sonhos nas noites. 


Nathan Ary

Formado em Cinema, é realizador, curador e formador audiovisual. Apaixonado por horror e por gibis sem capa dura. As vezes escreve críticas, as vezes devaneios, sempre os dois juntos.


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