Grande Sertão – O universo modernista de Guimarães Rosa transportado para o contemporâneo

Mesmo que muita gente não saiba ou não reconheça, o cinema brasileiro é uma grande potência quando se trata de adaptações, mesmo no passado, filmes como O Auto da Compadecida (2000) e Lisbela e o Prisioneiro (2003) conseguiram traduzir para o cinema toda a vida criada na literatura, como também fazer sucesso com o grande público, tornando-se grandes representantes da cultura brasileira. E claro, com o fato de que ambos filmes foram dirigidos e co-roteirizados por Guel Arraes e tendo como plano de fundo e misturando à história, o sertão e o nordeste, não seria grande surpresa ele tomar a frente no projeto de adaptar Grande Sertão: Veredas.

Guimarães Rosa não quis facilitar a vida de ninguém com a leitura desse livro, sendo um romance modernista ele é até hoje um desafio delicioso de se encarar. Sendo feito todo em apenas um parágrafo – de mais ou menos 600 páginas -, ele apresenta Riobaldo que vive a guerra e o conflito de seus sentimentos por outro homem e sendo narrado em primeira pessoa, traz toda a espontaneidade e confusão que nossa mente e sensações causam, por isso seu nível de complexidade e figuratividade são elevados. 

Entretanto, voltemos a falar de sua adaptação. Arraes, junto de Jorge Furtado – que também roteirizou O Homem que Copiava (2003) e Meu Tio Matou um Cara (2004) -, escolheram trazer a obra para o presente, misturando a realidade distópica de muitos lugares do Brasil, o Sertão transforma-se num complexo de comunidades, os jagunços de Joca Ramiro são traficantes e assassinos do morro e o bando de Zé Bebelo são uma espécie de paramilitares que por trás de um discurso de paz, propagam a violência. E dentro de todo esse caos, Riobaldo é um professor, que através da educação tenta trazer uma perspectiva de dias melhores aos seus alunos. Mesmo assim, é difícil ter fortes ideais numa guerra e não ser puxada para ela e quando isso acontece, os conflitos da guerra e do amor o motivam a cada passo. 

Tendo em vista esse enredo, dois medos me rondavam ao sentar na poltrona do cinema: a) seria possível adaptar um livro que mal se monta na nossa cabeça num filme? e b) seria possível trazer um filme que carrega no título o nome sertão e não cair nos estereótipos de tudo o que envolve essa palavra? E sendo uma pessoa criada do sudeste e que ainda não terminou de ler Grande Sertão: Veredas, não tenho certeza se minhas respostas para essas perguntas serão boas o suficiente. 

Mas, vamos tentar. Primeiramente, o filme se passa também sob toda a narrativa de Riobaldo e Caio Blat demonstra toda sua experiência em teatro e monólogos ao puxar a atenção do telespectador não apenas porque ele é o único em cena, mas por que sua fala, gestos e apresentação tem uma dança quase como o balançar de uma serpente e isso vai ser o nosso guia dentro de toda a história. A forma que Riobaldo vai seguindo seu percurso tentando intervir nos conflitos e propagar a paz de forma tão ingênua que beira a tolice, nos deixa numa mistura de raiva e esperança, de que talvez, no fim, ele consiga. 

Assim como Luiz Miranda, que sendo Zé Bebelo transitava entre a lei e a milícia, propagando uma ilusão aos moradores do complexo em busca dos interesses próprios – que também são os interesses da comunidade? -, numa atuação carismática e cheia de um charme, e uma performance que me lembrou em muitos momentos o Chanceler de V de Vingança (V for Vendetta, 2005). Numa mistura de sentimentos, pois não é coerente admirar nenhuma atitude dele, ao mesmo tempo levanta-se a questão, a lei sendo suprema, traz justiça?

Em contraponto, Luisa Arraes e Rodrigo Lombardi acabam se destacando negativamente, pois a atuação de ambos não consegue manter o tom teatral que o roteiro pedia. Falando especificamente de Arraes filha, sua atuação não é ruim, está dentro do esperado de qualquer atriz global que construiu sua carreira bem fundamentada, mas não chega a ser nenhum destaque e em minha visão, carregar o peso de ser Diadorim, não apenas o interesse proibido de Riobaldo, como também o braço direito de Joca Ramiro, a potência necessária para esse personagem ficou totalmente esquecido em monólogos que não atraem e expressões superficiais que não condizem com o resto, além de uma performance corporal que te tira do filme para entender “que invenção era aquela toda”. 

Lombardi, também acaba por mostrar que desde Salve Jorge (2012 – 2013), ele não é o tipo de ator que pode trazer profundidade para seus personagens, ficando sempre com uma cara amarrada para declarar ser o “homem mal” e nenhuma química ao contracenar com outros personagens, inclusive sendo engolido e totalmente apagado em muitas cenas, sendo no final do segundo ato em diante, totalmente desnecessário e esquecível, sendo segurado apenas por Diadorim, que não é lá muita coisa. 

Apesar disso, o restante do elenco, para além de Riobaldo e Zé Bebelo, também estão incríveis e transportaram toda a performance teatral para as telas de forma eficaz, não deixando de ser um filme, mas demonstrando que a linguagem de Guimarães Rosa não seria ignorado, pelo contrário, toda a não linearidade, metáfora e espetáculo da obra está muito bem demonstrada em cada cena, Mariana Nunes e Luellem de Castro, mesmo com suas personagens reduzidas aos clássicos (e limitados) personagens de mulheres negras sendo, respectivamente, a mãe solo sofrida e a negra sexualizada, conseguem tirar de suas personagens a força de mostrar que nessa brincadeira de quem mata quem, as principais vítimas e conciliadores são os moradores, em específico as moradoras.

Outro ponto, foi, como citado, a escolha de transformar o Grande Sertão em um Complexo do Sertão, não sendo em nenhum lugar específico do Brasil, mas um lugar em que Deus não nasceu, muito pelo contrário, ele esqueceu e nunca mais voltou. E isso foi particularmente interessante, mesmo sentindo que Riobaldo, sendo professor e membro ativo da comunidade poderia mostrar mais daquele mundo que de longe, todo mundo conhece ou já ouviu falar, mas de perto, só quem se aproximou desse tipo de realidade sabe como de fato é. Mas talvez para não deixar ultrapassar os quase 110 minutos, a edição tenha escolhido não mostrar tanto, mas a curiosidade existe. 

As marcas do diretor, Arraes pai, estão nesse filme muito bem feitas, não sendo uma direção que se destaca, mas que dá espaço para o roteiro seguir o que precisa em cada cena e provavelmente por ter se envolvido também nessa parte, conectar e alinhar os desejos das cenas com o que a câmera deveria mostrar não foi difícil, tento jogo de câmeras, distância nas cenas de ação e fuga e até um certo controle no excesso de cortes que favoreceu e muito a narrativa. 

Dito tudo isso, confesso que ainda não sei o que sentir referente a esse filme, não sei se ele me aproximou ou me afastou da obra original (lembrando que ele não tem como função fazer nenhuma dessas coisas), não sei se gostei das escolhas do roteiro, principalmente no último ato e não sei minha opinião sobre ser uma mulher cis a interpretar Diadorim e acredito que esses pontos podem ser positivos para o filme pois ele com certeza renderá muita discussão e não será meio termo entre os fãs de filmes brasileiros, os leitores e críticos. Mas de uma certeza eu tenho, o Brasil tem toda a capacidade de adaptar nossas obras e criar universos distópicos sem ser uma cópia de Hollywood.


VEJA TAMBÉM

A Hora da Estrela retorna aos cinemas, restaurado em 4K, em projeto de revitalização da história do cinema nacional

Vermelho Monet – É possível abraçar toda arte do mundo com as pernas?