O Problema dos 3 Corpos: 1ª Temporada – A eterna batalha pela sobrevivência

Altíssima aposta da Netflix (dizem que a empresa desembolsou cerca de 1 bilhão de dólares para fazer o programa acontecer) para ter uma série de ficção científica que faça por eles o que Game of Thrones (2011 – 2019) fez pela HBO – ou seja, trazer prestígio crítico, um público massivo e uma fortuna em licenciamentos –, O Problema dos 3 Corpos (3 Body Problem, 2024 -) adapta uma premiada trilogia literária situada na China e escrita por um chinês, que busca responder uma pergunta clássica do gênero: como a humanidade lidaria com uma invasão alienígena?

De início, essa é uma premissa que não chama muito a atenção, visto que já foi abordada várias vezes, tanto na literatura quanto no audiovisual (e Guerra dos Mundos é um dos exemplos mais clássicos do tema, em ambos os formatos). A inovação, aqui, se dá, principalmente, pela voz do autor Cixin Liu, numa mostra clara de como a arte precisa de artistas que saiam do eixo europeu/anglo-saxônico para apresentar ao mundo a diversidade que existe de fato, refletindo uma realidade que sempre esteve por aí, mas para a qual as elites dominantes, normalmente, dão pouca atenção. E é a partir de um contexto social, histórico e, até mesmo, filosófico, que foge do eixo citado, que o autor bebe do modo de fazer ficção científica de autores como Arthur C. Clarke e Isaac Asimov – só para citar os mais famosos – e retorce essas inspirações de forma a dar um grande sopro de novidade ao gênero. Clarke, principalmente, é onipresente na trilogia literária, tanto na forma quase obsessiva como Liu lida com os conceitos científicos da situação como também no uso dos personagens como ferramentas a serviço da narrativa. Isso faz com que a conexão com o leitor precise ser conquistada lentamente, exigindo que a dedicação à leitura de quem resolve mergulhar na história seja total.

Assim, é interessante perceber que a razão do sucesso dos livros é também aquilo que torna difícil adaptá-los para uma mídia visual: seu comprometimento com os conceitos científicos os mais próximos possíveis de nossa realidade e a priorização da narrativa sobre os personagens, fazendo com que estes não sejam os fios condutores da história. Porém, são exatamente esses motivos que explicam a escolha de David Benioff e D.B. Weiss – showrunners alçados à fama com a referida Game of Thrones – para comandar a versão da Netflix (existe outra adaptação, realizada para a TV chinesa em 2023). Apesar de algumas escolhas duvidosas e burradas históricas que eles fizeram em seu trabalho mais famoso, D&D (como são “carinhosamente” conhecidos) mostraram saber lidar com histórias que abarcam diferentes núcleos e, consequentemente, múltiplos personagens, além de entenderem que por mais épica que seja a escala de uma narrativa – e nos livros o escopo vai aumentando a níveis inesperados – é preciso se concentrar ao máximo nos elementos humanos, pois é isso que gera a identificação com o público. E, diferente da escrita, que pode levar páginas e páginas para convencer o leitor a embarcar na história que está sendo contada, o meio visual, geralmente, exige uma imersão mais rápida. Desse modo, a dupla aliou-se ao também showrunner Alexander Woo para transformar os livros em algo mais acessível ao público médio, sem que para isso fosse necessário “emburrecer” a história. Vendo agora como ficou essa primeira temporada, posso dizer que eles foram parcialmente bem-sucedidos. Ainda que o resultado não seja tão bem equilibrado quanto poderia ser, o saldo é positivo, com a maior parte das decisões tomadas na transposição dos livros se revelando acertadas.

Ao meu ver, a grande temática que perpassa os livros é a luta pela sobrevivência, seja individual ou coletiva, e como isso afeta as conexões que estabelecemos com os outros (humanos ou não, neste caso). A partir disso, o autor cria uma teia que interliga os personagens através de décadas, séculos e até milênios, elegendo para cada livro um “protagonista”, que na verdade nada mais é que um ponto de vista principal cujas ações e pensamentos estão a serviço da narrativa. Ou seja, o aprofundamento desses personagens se dá unicamente em função daquilo que Liu quer que mova a história. Não faço uso de juízo de valor para falar sobre isso, apenas estou constatando que essa foi a escolha dele (para o bem ou para mal; acredito que, nesse caso, funciona na maior parte do tempo).

Em relação a versão da Netflix, é possível dizer a trama também se sobrepõe àqueles que participam dela, mas em um grau muito menor. Acertadamente, os roteiristas criam personagens a partir da mistura de outros, além de buscarem dar uma complexidade maior tanto a eles quanto às relações entre eles. Se por um lado isso gera uma proximidade maior do espectador com essas pessoas, por outro a decisão de centralizar os acontecimentos em um grupo de amigos que vivem na Inglaterra exige que nossa suspensão de descrença seja esticada ao máximo, visto que não há, na lógica interna da história, uma justificativa para isso (não é como acontece em Lost, por exemplo, cujas “coincidências” são fundamentadas); além disso, essa decisão diminui o caráter globalizado dos livros, que apesar de se centrarem na China, possuem personagens relevantes de várias nacionalidades.

Esse referido grupo é composto de ex-colegas do curso de Física da Universidade de Oxford, que apesar de manterem a amizade, seguiram caminhos bem diferentes. Uma morte trágica volta a reuni-los e, a partir disso, uma série de situações estranhas passam a acontecer: desde a visão constante de uma contagem regressiva que Auggie (Eiza Gonzalez) vê, independente do que faça, até o surgimento de uma espécie de óculos de realidade virtual que leva seu usuário a entrar em um jogo bizarro. Aliam-se a isso os supostos suicídios de cientistas ao redor do mundo, investigados por Da Shi (Benedict Wong), e os flashbacks que contam a história de Ye Wenjie (Zine Tseng) durante e Revolução Cultural da China e tem-se um suspense instigante, de ritmo acelerado e que prende nossa atenção.

Contribuem para isso, também, as atuações, que vão do competente – caso de Eiza Gonzalez e Jovan Adepo, por exemplo – ao excelente, destacando-se Rosalind Chao (interpretando Ye Wenjie mais velha) e Alex Sharp (Will). Este, por sinal, é um grande exemplo de uma das reformulações que os criadores da série fizeram dos livros, transformando um personagem pequeno em um centro emocional na versão televisiva. Assim como uma clareza maior na explicação dos conceitos científicos, essas são alterações que não desvirtuam a obra original, mas que trazem outros caminhos e possibilidades para se chegar ao mesmo fim. Outro ponto a se destacar é a qualidade visual da série, resultado do grande orçamento: momentos como o mundo dentro do jogo, embora não sejam tão inventivos quanto no livro, trazem beleza e criatividade suficientes para causar o impacto necessário no espectador.

Na sua totalidade, essa primeira temporada de O Problema dos 3 Corpos não atinge o nível de excelência que se poderia esperar: não quero dizer, com isso, que ela falha; pelo contrário, as qualidades superam os defeitos. No entanto, a pressa de se avançar a história, assim como o número de episódios limitado a oito, se por um lado servem para que a série mantenha um ritmo constante e que a tensão não caia, por outro deixam alguns personagens e situações no campo da superficialidade. 

Ainda assim, apesar de algumas correções necessárias, o potencial que a série possui para se tornar grandiosa é gigantesco. Conhecendo os caminhos que a história segue nos livros, só me resta torcer para que a produção continue a levar isso às telas com o cuidado e qualidade que demonstraram nessa primeira temporada.


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