A Hora da Estrela retorna aos cinemas, restaurado em 4K, em projeto de revitalização da história do cinema nacional.

Sessão Vitrine é um projeto inovador de distribuição coletiva de filmes brasileiros. Com um lançamento mensal, seu principal objetivo é a formação de público, promovendo a democratização do cinema nacional. Com ingressos a preços reduzidos, a Sessão Vitrine já alcançou 250 mil espectadores nos cinemas e conquistou diversos prêmios no Brasil. Possui uma rede de cinemas parceiros com mais de 20 cidades em, pelo menos, 15 estados e, através das plataformas digitais.

Em parceria com a Petrobrás, a Sessão Vitrine Petrobrás, busca uma manutenção do nosso riquíssimo acervo audiovisual nacional. O projeto foi inaugurado com a digitalização e relançamento do filme Durval Discos (2002), de Anna Muylaert. Seguindo com a salvaguarda do nosso patrimônio cultural, o projeto traz A Hora da Estrela (1985) de volta às telonas em uma versão que restaura em alta qualidade essa obra majestosa em todo seu potencial visual e sonoro. A restauração foi feita com muito cuidado e qualidade por Débora Butruce a partir dos negativos originais preservados pela Cinemateca Brasileira.

“Eu sou Datilógrafa, sou virgem e gosto de Coca Cola.”

Adaptado do livro homônimo de Clarice Lispector, o longa dirigido por Suzana Amaral, acompanha a vida frívola de Macabéa, uma jovem órfã de 19 anos, migrante nordestina que, após a morte da tia, se muda para São Paulo. Com muita dificuldade em se adaptar a cidade, a ingênua Macabéa idealiza a busca de um amor verdadeiro.

Em 2018, em uma entrevista para a Revista do NESEF, a diretora e roteirista Suzana Amaral fala um pouco sobre o porquê de escolher esta obra, entre tantas mais marcantes de Clarice, para adaptar ao cinema: 

“Desde adolescente gostava de Clarice Lispector. Seus livros eram misteriosos, eu me identificava com eles. Fui à biblioteca da NYU, que tem uma bela coleção de literatura brasileira, e, com o dedo, achei o mais fininho. A Hora da Estrela foi um filme que saltou da prateleira para minhas mãos. Ao ler, saquei que Macabéa é a metáfora do Brasil, pois, fora do Brasil, você descobre o Brasil.” 

Em seu processo de criação de roteiro a partir de obras literárias, Suzana sempre teve um tato ímpar em compreender a fundo o que está lendo para adaptá-la em um filme que não se prende em replicar palavra por palavra, ao invés disso compreende o cerne daquela narrativa. 

“Junto com meu extrato íntimo, faço uma simbiose entre mim e o autor. Assim nasce a transmutação, ou seja, meu filme.” – Suzana Amaral, para a Revista do NESEF em 2018.

Essa delicadeza e compreensão são muito bem traduzidas em A Hora da Estrela. Ainda com suas divergências pequenas, o filme e o livro compartilham de um senso de ironia que contrasta com um cuidado, quase um sentimento de pena, pela protagonista. Suzana entende as nuances da vida de Macabéa, compreende seu carisma e suas qualidades, nos fazendo se afeiçoar por ela, mas não ameniza o quão densa e cruel é a realidade vivida por ela. 

Apesar de ser seu primeiro contato com cinema, Marcélia Cartaxo interpretou com maestria de uma veterana a jovem Macabéa. Traduzindo com muita delicadeza a inocência da personagem, que se vislumbra com coisas banais e rotineiras como parafusos e o metrô, mas trazendo de plano de fundo a tristeza intrínseca daquela jovem que se vê sozinha e perdida, diante de pessoas de costumes tão diferentes em um mundo que ela não consegue compreender enquanto ela não consegue sequer entender a si mesma. É interessante assistir a atuação crescente de Marcélia neste filme quando entendemos hoje a potência que ela é.

Pode parecer até redundante falar que Fernanda Montenegro é uma força além do natural nesse filme. Sua performance é pontual, mas muito marcante em uma personagem que desempenha um papel importante na trama. Fernanda dá vida a Madame Carlota, uma cartomante de índole dúbia que atravessa o caminho de Glória (Tamara Taxman) e de Macabéa. Apesar da veracidade do trabalho de Carlota ficar aberta a interpretação, ela movimenta a trama como uma força sobrenatural, regendo e manipulando alguns pontos do desenrolar da vida de Macabéa, em aspectos negativos mas também de forma positiva, proporcionando a Macabéa um momento misericordioso de pura alegria.

Interessante observar a naturalidade que a A Hora da Estrela abraça. Não apenas em termos de roteiro, mas em sua estética, o filme segue um ritmo bastante rotineiro e crível. A fotografia de Edgar Moura proporciona um retrato muito realista da vida no Brasil nos anos 80. Os passeios no parque, a afeição das colegas de quarto de Macabéa pela novela que acompanham religiosamente todos os dias pela janela do vizinho. Os cenários urbanos familiares, apesar das transformações do tempo. Um tom muito sútil de questionamentos sobre classe, como quando nossa protagonista fala que não come cachorro quente com coca cola por que gosta e sim por que é o que ela pode pagar. 

A trilha sonora de Marcos Vinicius, transmitida com uma qualidade límpida na restauração, traz elementos dramáticos e teatrais para o filme, colaborando muito com a compreensão de que Macabéa enxergava tudo à sua volta com notas de fantasia. Marcos brinca bastante com o sonho dela de se casar, usando a tradicional música de entrada da noiva ao longo do filme, usando dela em tom cômico, dramático ou sonhador. 

Não à toa A Hora da Estrela foi nomeado um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e levou quase todos os prêmios (com exceção de melhor som, pois não tinha sido produzido com som direto) na 18° edição do Festival de Brasília de Cinema Brasileiro em 1985. Um tesouro nacional, o trabalho de Suzana Amaral é sincero, cativante e doloroso. Não se prende aos exageros e ganha seu público pela simplicidade que torna o filme tão fácil de se relacionar.

Enquanto realizadora audiovisual e forte defensora do cinema Brasileiro, me emocionei muito ao estar presente em um momento histórico. A restauração e disseminação dessa e de demais obras só é possível por políticas públicas de preservação da nossa história e da nossa cultura. É de encher o coração de orgulho e esperança ver uma obra tão emblemática ganhar espaço nas salas de cinema novamente.


VEJA TAMBÉM

A Vida Invisível – Jaulas inventadas

Mãe e Filha – o simbólico no sertão