Decorações festivas, neve, presentes, Papai Noel, ceias, reuniões familiares e o sentimento de milagre ou magia. Essas são características comuns de um filme de Natal, um subgênero cinematográfico que explora temas relacionados à solidariedade, generosidade e amor. Em Os Rejeitados (The Holdovers, 2023), Alexander Payne subverte todos esses elementos em um filme sem enfeites ou milagres natalinos.
Payne é conhecido por seus filmes com personagens mordazes e tragicômicos, e repete a parceria com Paul Giamatti depois de Sideways: Entre Umas e Outras (Sideways, 2004), a última produção entre os artistas. Enquanto isso, Giamatti dá vida a um personagem tão cáustico, transtornado e sarcástico quanto seu Miles de vinte anos atrás. Mas agora, diferente de Miles, o Sr. Hunham está preso em um único lugar com a sua mais indesejada companhia: um de seus alunos.
O ponto focal da história acontece na Barton Academy, uma escola preparatória para jovens rapazes abastados. Não se comemora festas de final de ano dentro de uma escola, mas será nesse ambiente que Paul Hunham, Mary Lamb (Da’Vine Joy Randolph) e Angus Tully (Dominic Sessa) serão reunidos, não por vontade própria, mas pelas circunstâncias. Diferente do que normalmente observamos em um filme de Natal, em Os Rejeitados não existe moral da história.
A narrativa é ambientada durante o período natalino, porém, esteticamente se mostra sem adornos em sua composição crua, densa e melancólica. Os símbolos associados ao Natal são apresentados de maneira tragicômica: uma árvore decadente sem enfeites, presentes indesejados e um Papai Noel bebendo e xingando no balcão de um bar. A acidez e sarcasmo na abordagem dos elementos visuais indica que o foco da história não está no que vemos, mas naquilo que está escondido. O mais próximo da representação da imagem clássica do Natal é apresentado na festa de Lydia (Carrie Preston), funcionária da escola.
Durante o evento, Paul e Mary estão deslocados da festa. Paul passa por uma desilusão amorosa e Mary relembra de seu falecido filho através das suas canções favoritas. Em dado momento, um convidado pede para ela trocar a música por algo mais moderno e animado, como um lembrete que nos diz que durante o Natal não há espaço e ouvidos para aquilo que não seja considerado feliz. Em seguida, Mary tem uma crise de choro. A cena acontece na cozinha, longe da festa natalina. Dor, tristeza e saudade não são sentimentos que magicamente cessam durante datas comemorativas.
O abandono de Angus é a razão pela qual Paul e Mary permanecem na escola durante o recesso de fim de ano. A nova tradição da família de Angus não o inclui. O jovem é a lembrança de um passado que não pode ser salvo pela magia do Natal. Sua ida ao manicômio nos revela um outro grupo de pessoas rejeitadas. Assim como Angus, seu pai também foi abandonado e deixado de lado durante as festividades de fim de ano. Pior, durante toda uma vida. A visita de Angus desperta expectativas em seu pai, mas isso é inconcebível para sua família, afinal, eles não querem dar esperanças a ele. A esperança é permitida para alguns e proibida para outros.
Por outro lado, Mary Lamb não pôde celebrar o Natal com seu filho, Curtis. O jovem estudou em Barton, mas sua família não possuía recursos suficientes para arcar com os custos de uma faculdade. Isso fez com que Curtis fosse convocado e viesse a falecer durante a Guerra do Vietnã. Nesse ponto, o filme revela que, assim como o trio central de personagens, Curtis também foi rejeitado, dessa vez pelo contexto sociopolítico da época. Uma mãe perdeu um filho que defendeu o país que não o defendia. Quem são as figuras rejeitadas pela História?
Após o funeral de Curtis, todos retornam às suas casas para comemorar o Natal com suas famílias, menos Mary. A cozinheira chefe da escola é sincera e não mede esforços para repreender Paul quando necessário, como quando fala para o professor: ‘‘Você não diz a um garoto que foi abandonado no Natal que você está doido para se livrar dele. Que ninguém o quer.’’ Não se abandona ninguém, principalmente aqueles que já estão abandonados. Empatia pelos abandonados.
Paul e Angus afirmam certezas um sobre o outro e apontam suas diferenças em qualquer situação oportuna, mas a partir da convivência e da viagem para Boston, professor e aluno começam a aprender um com a história do outro. Angus profetiza se transformar em seu pai, e Paul acalenta o rapaz ao afirmar que nunca seremos como nossos pais e que nossa história não deve ditar nosso destino.
Ao reencontrar um colega de escola, Paul mente sobre a situação de sua vida, e ao ser confrontado por Angus sobre o fato, diz: ”ele não tem direito à minha história. Eu tenho’’. Nossas vidas não são conduzidas pelas percepções que os outros nos atribuem. A percepção do outro sobre sucesso e fracasso não dita aquilo que é sucesso ou fracasso para a nossa vida. Afinal, vida é percepção, como diz Paul para um homem vestido de Papai Noel.
Ao explicar que a vestimenta é historicamente incorreta, o professor aponta que aquilo considerado verdadeiro é algo que inventamos para (se) tornar verdade. Dessa forma, construir nossas verdades implica um trabalhoso e caótico processo de invenção e elaboração para existir de maneira autêntica e sincera no mundo.
Por fim, Os Rejeitados embala personagens e histórias melancólicas durante a época do Natal, abordando com honestidade, profundidade e sem adornos temas e situações indissociáveis à experiência humana. O final agridoce deixa em aberto o que esperar para o futuro dos personagens, mas é um lembrete de que, assim como diz Paul ao citar Cícero, ‘‘não nascemos apenas para nós mesmos’’.
Não existimos apenas para si, porque nossa existência está para além de nós. Durante os dias que conviveram juntos, Paul, Mary e Angus se presentearam com companhia sincera, honestidade crua e o respeito aos seus silêncios, segredos e fantasmas. Ao conhecerem mais cada um, passaram também a se conhecer melhor. E desse encontro, essas três pessoas levam consigo aquilo que talvez seja o verdadeiro espírito do Natal: se permitir sentir esperança.
Matheus Cosmo
Produtor cultural, pesquisador teatral e elaborador de projetos. Licenciado em Teatro (UFC) e pós-graduando em Gestão Cultural (UVA). Como autor, participou das publicações ”Cadernos de Montar: estações do processo criativo de Cama de Baleias” e ”Rio Acima: vozes do processo de Das Dores 38”, ambas sobre processos criativos em espetáculos de teatro.
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