Hausu – um delírio surrealista, cômico e perturbador

“O poder do cinema não está no que é lógico e sim no que é estranho e inexplicável” Estas palavras do diretor Nobuhiko Obayashi condensam precisamente a magia e personalidade marcante de seu primeiro longa-metragem: Hausu (1977).

A história acompanha Gorgeous (Kimiko Ikegami), que ainda lidando com a perda de sua mãe, descobre que seu pai irá se casar com outra mulher. Abalada com a notícia, ela escreve uma carta para sua tia perguntando se poderia visitá-la durante as férias de verão. Assim, nos juntamos a Gorgeous, seu gatinho Snowly e suas amigas (Prof, Mac, Melody, Kung Fu, Sweet e Fantasy) e partimos em uma jornada psicodélica e sobrenatural assombrada por esqueletos dançantes, cabeças voadoras que mordem bundas, gatos demoníacos,  pianos assassinos, relógios e paredes sangrentos. Nada pode preparar essas jovens garotas, e o espectador, para o que está por vir.

Nobuhiko criou a história, junto de sua filha Chigumi Obayashi que na época tinha apenas dez anos. Ele consultou sua filha pois, em sua visão, os adultos racionalizar demais tudo, principalmente seus medos, enquanto uma criança não busca racionalizar as coisas desta maneira, sua imaginação não está engessada pela racionalidade e seus medos vêm de lugares inexplicáveis. Era essa a experiência que ele queria criar com Hausu, uma narrativa tão absurda que deve ser apenas sentida, sem precisar de longas explicações. Tendo isso em mente, Chiho Katsura foi convidado ao projeto para construir o roteiro a partir do argumento criado por Obayashi e sua filha. 

Desde o início, o filme nos coloca no ponto de vista dessas garotas e nos insere em uma atmosfera borbulhante, ingênua e fantasiosa. Tudo soa leve, inocente e exagerado, como se estivéssemos de fato enxergando o mundo através da perspectiva criativa de crianças e suas mentes férteis. Nesse clima de diversão elas se reúnem para a viagem de trem rumo a casa da tia de Gorgeous. 

A sequência é descontraída e temos o primeiro contato com o uso de animações 2D no filme. Conhecemos mais sobre cada uma delas e seus arquétipos representados de maneira propositalmente óbvia por seus nomes: Prof (Ai Matsubara) é uma garota muito inteligente e dedicada aos seus estudos, Fantasy (Kumiko Ôba) vive presa em seus contos de fadas e histórias de fantasmas, Kung Fu (Miki Jinbo) tem habilidades de luta quase sobre humanas, Melody (Eriko Tanaka) tem um dom natural para música, Mac (Mieko Satô) com um apetite infinito e uma paixão por melancias, Sweet (Masayo Miyako) que é gentil e carinhosa e Gorgeous, conhecida assim por sua beleza e vaidade. A simplicidade nos nomes também se estende aos adultos que são chamados de Pai, Mãe, Tia, Madrasta e etc. A estrutura básica do filme é construída dessa maneira mais trivial e de fácil compreensão para que a complexidade seja trabalhada em outros aspectos do filme, especialmente em sua estética psicodélica, fantasiosa e sangrenta.

Após atravessar florestas e montanhas elas chegam até a casa. É a partir deste ponto, mais especificamente no momento em que a tia lhes recebe na porta, que podemos sentir uma mudança no tom do filme. Há algo estranho, não apenas na casa como também naquela mulher, mas ainda não conseguimos dizer o que é.

Uma série de eventos estranhos vão acontecendo e alimentando o caos crescente que permeia o filme, assim como alimentando a própria Casa, que passa a funcionar como um personagem central da história. Similar ao que acontece com Snowly, sim o gatinho de Gorgeous, que surge discretamente em sua janela no começo do filme e, sutilmente vai criando em torno de si um mistério, se tornando uma peça chave para os eventos que irão acontecer. Não à toa a imagem do gato é um dos principais símbolos trabalhados nos materiais promocionais do filme.

As atuações são de uma teatralidade caricata que, propositalmente, beira o artificial, a ponto das risadas e piadas se entenderem mesmo após o começo do ciclo de horrores, como se elas não se dessem conta do que está acontecendo a sua volta. As garotas tem uma energia excelente enquanto grupo e trabalham bem seus arquétipos individualmente. Com destaques para Miki Jinbo, que vive a carismática Kung Fu, Kumiko Ohba que abraça a alma do filme através dos devaneios de sua personagem Fantasy e Kimiko Ikegami que lidera o grupo das garotas e traz, na medida certa, o pouco de seriedade e emoção que a história de Gorgeous pede.

A montagem de Nobuo Ogawa cumpre um papel essencial, desafiando regras e se permitindo erros de continuidade ou cortes bruscos, mesclando diversos estilos de animação e realidade. Tudo regido por um tom cômico que chega a ser cínico com os absurdos que estão acontecendo. Como Hausu consegue fazer o público rir enquanto uma garota é devorada por um piano? Estamos rindo de nervoso? A fotografia de Yoshitaka Sakamoto, antes etérea e plástica, se torna desgovernada, confusa e vibrante. 

A banda japonesa Godiego faz uma pequena aparição na estação do trem no começo do filme e assina a trilha sonora. As músicas iniciam com uma energia cósmica de rock sessentista e acompanham as mudanças de atmosfera do filme, se tornando melancólicas. Há rumores de que a faixa “In The Evening Mist” tocada por Melody no início do filme teria servido de inspiração para Gerard Way compor a icônica intro de Welcome to The Black Parade. As melodias de fato são bastante parecidas (e o álbum foi composto pela banda em uma considerada casa assombrada em LA), mas não encontrei nada que confirmasse isso.

A escolha do diretor de começar o filme com um tom divertido, com um toque dramático no fundo, para depois quebrar essa construção e inserir o horror e elevar o humor despretensioso para um humor escrachado e absurdo, serve para mostrar esse olhar ingênuo das personagens sobre o mundo e o choque das mesmas diante dos terrores da casa. Essa mudança de linguagem, muito presente em outras obras dele, também parte de uma percepção de mundo pessoal dele. Nascido e criado em Hiroshima, Nobuhiko teve uma infância boa e afetuosa, até perder muitos parentes e amigos no trágico bombardeio durante a segunda guerra mundial. Ele relata que neste momento percebeu que a vida muda de gênero sem aviso prévio, tudo pode estar bem até que em um momento você se vê, despreparado, em um cenário de puro horror. Ele pontua que naquele trágico dia, ele nasceu como artista pois sua dor foi tamanha que apenas no cinema conseguiu expressá-la. 

Considerar essa bagagem trágica do diretor também oferece um outro olhar sobre Hausu. Por baixo de toda a bizarrice cômica e perturbadora, Obayashi expõe as feridas causadas pela guerra. Tia, interpretada com maestria pela veterana Yōko Minamida, lida com uma solidão visceral após perder o grande amor de sua vida e sua família. As crianças, uma representação da geração que nasceu após a guerra, não tem dimensão dos horrores que assombram a história até terem contato com a Tia e suas memórias. Além disso, a narrativa das crianças e a quebra de suas fantasias ao terem contato com a casa funciona como um desabafo do diretor sobre sua própria infância, onde sua felicidade e inocência foram usurpadas dele em um acontecimento tão aterrorizante. 

Hausu é uma experiência divertida, surreal e despretensiosa, mas com camadas de complexidade narrativa e riqueza técnica que são dissecadas a cada vez que é assistido. É um filme que quebra com os moldes do que é fazer cinema e estabelece suas próprias regras. Sua personalidade forte e desafiadora o torna uma obra atemporal que segue relevante, rendendo diversas analises ou simplesmente uma boa e leve noite de filme entre amigos. Goste ou não, não se pode negar que em quase cinco décadas não foi produzida nenhuma obra sequer parecida com este filme de Nobuhiko Obayashi.


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