Honestamente é um dever difícil separar uma pessoa como Chadwick Boseman, e todo o seu legado deixado como o primeiro grande super herói negro a ganhar uma franquia nos cinemas, de um filme com laços tão profundos com o mesmo. O personagem de Boseman, Rei T’challa foi uma das melhores e mais bem aproveitadas adições no Universo Marvel em sua terceira fase, e o primeiro filme da franquia um sucesso de bilheteria. Na primeira obra, lembro-me de ficar de queixo caído por toda a construção não apenas da mitologia cercando o Pantera Negra, mas tudo por trás da história de Wakanda e cada um de seus personagens. O próprio elenco do filme é algo grandioso demais, cada um tendo sua parcela de contribuição direta para o sucesso do filme e construindo um marco histórico do cinema – se falando em blockbusters – com elenco principal negro.
Um dos maiores problemas em geral nas obras da Marvel pós fase 1 e 2 é como elas não têm suas sequências, mas sim sequências dentro do Universo, e como, por isso, perdemos de explorar melhor a história central de cada um dos heróis sem pensar no UCM no geral. Esse medo se concretiza quase sempre, com obras com enormes saltos temporais, sem a valorização devida aos personagens de apoio ou sequer arcos de personagem. Neste caso isso seria um enorme desperdício e honestamente os personagens, a cultura, tudo relacionado ao universo de Pantera Negro é a maior prioridade na sequência dirigida por Ryan Coogler. A alma da franquia está em boas mãos sob supervisão do diretor, capaz de entregar uma história tão cativante, emocionante e repleta de ótimas cenas de ação e valorização à culturas muito ignoradas pela mídia.
Duas forças carregam dois terços do filme nas costas, antagonizando entre si, Angela Basset como a rainha Ramonda é uma delas. Não esperava tanto foco e desenvolvimento para a personagem de Basset, considerando como a Marvel trata a maioria de suas figuras maternas dando-as o peso apenas de morrer para nutrir a narrativa de seus filhos. Carregando o peso dramático de absolutamente boa parte do filme, Ramonda lida não apenas com o falecimento de seu filho mas com todo o mundo que está de olho no Vibranium de Wakanda. Vibranium, um metal extremamente raro apenas encontrado em Wakanda e a fonte de toda a tecnologia avançada da nação. De luto e mesmo como rainha, a personagem de Basset não deixa de ser mãe de Shuri, sua filha mais nova, interpretada por Letitia Wright.
Mesmo não sendo proposital, a personagem de Basset rouba totalmente o protagonismo do filme, talvez pelo fato de sua preocupação com sua nação e sua família carregarem os acontecimentos ao longo de boa parte do filme. Sem querer dar spoilers, tudo o que acontece no terceiro ato do filme se dá pela escolha de Ramonda como mãe e como rainha. Não sabemos apenas sobre sua trajetória de perda, podemos ter contato com suas mágoas, seus medos e também a sua fé. Fé essa de grande importância para o filme, espero inclusive que seja finalmente o momento de explorar as raízes místicas de Wakanda em futuros projetos da franquia. Afinal, a existência do plano espiritual já evidencia desde o primeiro filme como existe essa conexão mágica e sinceramente a franquia sob a direção de Ryan Coogler se beneficiaria muito de sua visão sobre esse tipo de expansão do universo.
Mas dando um rápido salto na narrativa, é extremamente necessário valorizar o quanto o talento da ganhadora do Oscar por seu trabalho no primeiro filme, Ruth E. Carter, fez toda a diferença para o filme como obra. Se não é fácil imaginar Wakanda sem ser sob a direção de Ryan Coogler, é tão difícil quanto imaginar a nação pelos olhares de outra pessoa como figurinista. Desta vez as coisas particularmente parecem ainda mais orgânicas, reais, mesmo sob o contexto fantástico da obra. Desta vez parecemos ainda mais distantes do Universo Marvel, próximos de uma história real, mesmo com todos os elementos de ficção científica presentes no filme. A forma como Ruth conseguiu unificar as tribos de Wakanda durante o funeral do Rei T’Challa, primeiramente apresentadas com cores e tecidos bem diferentes, todas se unem sob o branco do luto por seu rei. Os figurinos ao longo do filme, assim como os designs das armaduras, se encaixam muito nesse lado ainda um tanto inexplorado do Universo Marvel e em minha opinião o trabalho de Carter merece ainda mais todos os grandes prêmios da indústria.
Difícil falar da outra força de peso presente narrativamente no longa sem mais uma vez falar dos figurinos e da direção de arte o envolvendo. Primeiro é importante apontar que Namor é um personagem antigo nos quadrinhos, criado para ser o príncipe de Atlante, uma cidade submersa e com uma origem bem parecida com o Aquaman. Mesmo Namor tendo sido criado antes de Arthur Curry, havia uma certa preocupação com as comparações entre os dois príncipes submarinos quando Namor fosse fazer sua primeira aparição no Universo Cinematográfico da Marvel. Coogler não adaptou Atlantis, ele criou Talokan, uma enorme civilização originada antes da colonização da América, especialmente ao povo Maia. Se as tribos Africanas foram a base para a criação da cultura, da direção de arte, das armas e dos figurinos de Wakanda, foram as sociedade mesoamericanas a origem da civilização de origem de Namor.
Pela atuação de Tenoch Huerta, somos apresentados ao anti-herói da Marvel e também ao mundo submarino que o cerca. É incrível como o talento de apresentar os melhores e mais razoáveis antagonistas do universo cai quase sempre sobre os ombros de Ryan Coogler, com Killmonger (Michael B. Jordan) no primeiro filme e agora Namor. Mas o melhor ainda é a beleza de toda a apresentação a essa nova sociedade no mundo da Marvel, feita tão cuidadosamente com uma arte mostrando a grande pesquisa para a criação de um dos filmes com elenco negro de maior orçamento. Além de tudo, representar o povo de Talokan como nativo-americanos trouxe à Marvel grandes talentos praticamente ignorados em grandes filmes de Hollywood. O filme traz dois grandes personagens da mitologia de Namor, são eles Attuma (um dos generais do anti-herói, interpretado por Alex Livinalli) e Namora (prima e também líder dos guerreiros de Talokan, interpretada pela atriz Mabel Cadena). Com a apresentação desses personagens há agora apenas o desejo de mais da cidade e do mundo submerso de Talokan, além de explorar mais a história por trás desta civilização. Inconcebível o quão injusto é o mercado do cinema pois estes três atores, não apenas latinos mas com traços indígenas, tiveram poucos ou nenhum papel de destaque em um grande longa. Mais uma razão para trazermos mais do universo de Talokan em breve, mergulhar ainda mais nesse universo e explorar estes talentos.
Novas adições ao elenco de Wakanda são bem vindos na forma de uma nova Dora Milaje, interpretada por Michaela Coel. Uma grande atriz, capaz de fazer muito por um personagem, mesmo com tão poucas cenas ou disposição da narrativa em lhe desenvolver – em particular arrisco dizer da própria Disney. Sua personagem tem origem nos quadrinhos, em histórias bem recentes até, chamada Aneka. Casada com outra Dora Milaje, Ayo (Florence Kasumba), as duas trocam poucas interações, pois ainda vivemos com medo das pessoas verem casais LGBTQIAP+ nas telonas em um filme de tão grande orçamento. Sutil, a relação das duas deixa mais a desejar, mas a própria história do filme as dá um local especial em meio a esta nova etapa na história de Wakanda. Para quem já conhece o casal Aneka e Ayo dos quadrinhos, não é neste filme que veremos as duas como Anjos da Noite. Mas o papel das Dora Milaje nesse filme carrega um certo desenvolvimento maior, não descansando apenas nos ombros da personagem de Danai Gurira. Após tantas perdas, do próprio marido e do rei (duas vezes, quando lembramos sobre o estalo feito por Thanos), ela deve encontrar-se para além de sua identidade de General das Dora Milaje. Buscar explorar novas jornadas para nossos personagens torna a história melhor, se feito de forma fluída e condizente com o apresentado anteriormente, isso foi feito com a maioria do elenco da sequência de Pantera Negra.
Quando se fala sobre caminhos novos para personagens, é estranho comparar nossa protagonista, Shuri, com suas três primeiras aparições no UCM (Pantera Negra, Guerra Infinita e Ultimato). Apesar de compreender sim as mudanças causadas pelo luto, ainda é difícil enxergar a personagem de antes neste novo arco, sobre a perda de entes queridos e sua busca por defender Wakanda. Inclusive, o nome do filme pode ser Pantera Negra, mas a presença menos sentida no mesmo é exatamente da Pantera Negra, não por manter a aparição de quem carrega o manto para o terceiro ato, mas sim por não parece ser algo necessário para a história. Quem unificou as tribos de Wakanda foi exatamente o primeiro Pantera Negra, então é de se esperar um pouco da responsabilidade de quem fosse carregar o manto responsável por Wakanda e sua proteção. Compreendo como o falecimento de Chadwick Boseman influenciou na escolha de quem iria assumir o manto, mas fica claro neste filme como a personagem apresentada anteriormente nunca esteve nos planos de virar Pantera Negra, então foi necessário uma mudança radical na mesma. Saí da sala de cinema sem uma cena sequer onde senti a valorização do potencial de Letitia Wright, uma incrível atriz cuja personagem se perde apenas para servir propósitos narrativos. A cena de encerramento é uma verdadeira obra de arte, mas ainda assim sua personagem não recebeu a atenção ou até tempo de tela necessário para a consagrar como protagonista, em especial contracenando com Angela Basset.
Ao som de Rihanna, sinto informar que, mesmo com esse texto extremamente grande, eu não consegui pôr em palavras o tanto quanto desejava falar sobre o filme. É muito importante exaltar uma obra cujo objetivo é não apenas contar uma história sobre heróis e vilões, mas a humanidade dentro destes mesmos, trazendo o protagonismo negro e amerindígena através de um enorme respeito por suas culturas. Killmonger e Namor são antagonistas da franquia Pantera Negra, mas o verdadeiro vilão e responsável verdadeiro pelos conflitos ocorridos nos dois filmes é apenas um: a colonização. Ryan Coogler consegue abordar um tema tão importante em um filme de boneco, e isso merece ser valorizado. Desejo continuar vendo este universo se expandir, especialmente se puder ter a chance de ver mais da trajetória desta nova Pantera Negra. O legado de Chadwick foi perfeitamente honrado, mostrando como ele e seu personagem, o rei T’Challa, deixaram a sua marca nos dois mundos: o nosso, e o do Universo Cinematográfico da Marvel. Espero ansiosamente pelo retorno de Letitia Wright como Shuri na série de Riri Williams (Dominique Thorne) – personagem apresentada neste filme, e que terá uma aventura como a Coração de Ferro em um seriado de mesmo nome -, assim como este filme me deixou desejando mais uma vez o que Ryan Coogler vai fazer com todos estes personagens, especialmente nas novas tramas onde cada um de nossos personagens se encontram ao final do filme.
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Cineasta graduade em Cinema e Audiovisual, produtore do coletivo artístico independente Vesic Pis.
Não-binarie, fã de super heróis, de artistas trans, não-bináries e de ver essas pessoas conquistando cada vez mais o espaço. Pisciano com a meta de fazer alguma diferença no mundo.