Morte Morte Morte – Uma caricatura divertida e ácida da Geração Z

Um grupo de jovens ricos se reúnem em uma mansão para se abrigar de um furacão. Sophie (Amandla Stenberg), uma amiga de longa data destes jovens que estava em reabilitação, e sua namorada Bee (Maria Bakalova), vão para a festa sem serem convidadas. Quando a noite cai e uma tempestade chega, eles começam a chamada “festa do furacão”. Dado momento resolvem começar um jogo de mistério e investigação chamado ‘bodies, bodies, bodies’ onde as luzes se apagam e quando são acesas novamente há uma vítima e os demais devem descobrir quem foi o assassino, bem ao estilo do jogo que aqui conhecemos como ‘cidade dorme’. A brincadeira termina após uma discussão entre o casal mal resolvido Emma (Chase Sui Wonders) e David (Pete Davidson). Há uma queda de energia na mansão e Bee, enquanto procura pelo gerador, acaba encontrando David com a garganta cortada. Deste ponto em diante o jogo toma proporções reais e as garotas se deparam com um mistério em mãos para desvendar. Esta é a premissa do hilário e intrigante Bodies Bodies Bodies (2022) lançado em 5 de agosto deste ano pela A24 que chegou ao Brasil nesta quinta, dia 06 de outubro. 

A diretora Halina Reijn, que teve sua estreia com o drama Instinto (Instinct, 2019), retorna a trabalhar com a ousada produtora A24 nesta releitura moderna de ‘E Não Sobrou Nenhum’, clássico de Agatha Christie. Remontando a atmosfera de desconforto e tensão do livro de 1939, Halina critica a superficialidade dos posicionamentos sociopolíticos e das relações estabelecidas por jovens da geração Z enquanto entrega noventa minutos de puro caos e diversão. Sua direção é muito certeira, especialmente quanto ao timing das piadas, dos momentos de suspense e dos momentos de mais seriedade onde podemos ver o que os personagens escondem por baixo de suas máscaras caricatas. Saber dosar esses extremos é um dos maiores desafios ao criar uma obra satírica, as possibilidades de desastre são inúmeras, mas ela certamente domou esse desafio.

Não tinha uma experiência tão boa e fluida com um filme de terror comédia desde o desregrado As Garotas da Tragédia (Tragedy Girls, 2017). Tudo se entrelaça com bastante harmonia em um longo ‘tecido’ que diverte, mas na medida certa desperta questionamentos e inquietações. Outro acerto da diretora, e também da roteirista estreante Sarah DeLappe, é o uso dos elementos clássicos do gênero slasher para conduzir o espectador para um caminho que parece absurdamente previsível e, no momento certo, surpreendê-lo com uma revelação cômica e genial que quebra essa expectativa criada ao longo da experiência, chegando a transformar por completo toda a narrativa e sua mensagem.

O longa se propõe a expor privilégios de classe e deixa isso muito claro desde o momento em que nos apresenta as figuras centrais e o cenário onde toda a narrativa irá se desenrolar. Os personagens são propositalmente irritantes e fúteis. Não se importam com o furacão que está se aproximando e não parecem sequer se dar conta da regalia que é ter um espaço seguro para se resguardar durante a passagem do desastre natural, para eles tudo parece mais um fim de semana de festas costumeiro. Pautas sociais são levantadas através de termos desgastados do Twitter para alimentar a falsa sensação de serem politizadas e conscientes, mas sequer conseguem enxergar as próprias problemáticas e privilégios. Outra temática que ganha um holofote crítico em Bodies  Bodies Bodies é a cultura do cancelamento. Isso é abordado de maneira muito direta quanto, diante da morte do amigo, uma passa a acusar a outra em uma briga de egos absurda. As acusações infundadas, que partem principalmente da persuasiva e manipuladora Jordan, interpretada por Myha’la Herrold, geram situações de surto coletivo que levam a ações irreversíveis. 

Os personagens masculinos são rasos e isso não chega a configurar um problema, eles cumprem seus papéis e ajudam a preparar terreno para o desenrolar do enredo. Durante a divulgação, houve um uso excessivo do nome de Pete Davison que, por algum motivo que não entendo, é bastante famoso em terras norte-americanas, mas apesar de dar vida a um personagem importante, sua atuação não é nada memorável e David não faz falta alguma nos momentos em que não está em tela. Em contrapartida, o núcleo feminino parece compreender muito bem suas personagens e nos presenteiam com atuações assertivas. Amandla Stenberg (que viveu a pequena Rue em Jogos Vorazes) e Maria Bakalova (indicada ao Oscar por seu papel em Borat: Fita de Cinema Seguinte) têm uma química tão peculiar quanto o relacionamento que suas personagens vivem. Os grandes destaques são Rachel Sennott e Myha’la Herrold. Rachel vive a podcaster Alice, a personagem é a personificação de toda a essência do filme e do grupo que a obra satiriza. Por trás do estereótipo da jovem rica fútil, ela transborda personalidade e carisma. Myha’la encarna a figura mais complexa, Jordan é controladora e ao decorrer da trama vamos entendendo que toda essa busca desenfreada por controle vem de uma tentativa de controlar o seu próprio caos.

A estética é trabalhada com bastante atenção e cuidado para trazer a sensação de jovialidade e confusão, mas é o som que consegue acompanhar melhor o nível de originalidade do roteiro. O compositor e produtor Disasterpeace, responsável pelas trilhas sonoras de Corrente do Mal (It Follows, 2014) e O Mistério de Silver Lake (Under The Silver Lake, 2018), desempenha um papel muito focado e sucinto. Com apenas nove faixas que irão usar da repetição de forma certeira, ele cria uma identidade sonora bem alinhada ao propósito da obra, mas sem deixar de lado elementos clássicos de suas produções ao trazer sons metálicos e graves crescentes com claras influências do trabalho de John Carpenter com pinceladas do eletrônico industrial e do Dark Pop. Alguns nomes do hyperpop como Slayyyter, Shygirl e Charli XCX (esta última com uma faixa original para o filme) entram na trilha musical para fortalecer essa personalidade frenética. 

Ácido, caótico e sem medo de arriscar Bodies Bodies Bodies oferece uma experiência cômica e surpreendente. Em um ano tão bom para o terror, especialmente para o slasher, a obra de Halina Reijn não fica para trás e garante sua posição como um dos destaques de 2022. 


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