Os Tênis Encantados – Uma bem-vinda reformulação em um conto de fadas

Vamos começar do começo: o clássico dos contos de fadas Cinderella já foi adaptado de toda forma possível, e chegando em 2022 você não espera nada novo sendo feito com o mesmo. Provavelmente Hollywood faz ao menos um filme baseado em Cinderella a cada dois anos, no mínimo. A falta de originalidade moderna da indústria americana de cinema é bem evidente com o passar dos anos, não esperava exatamente gostar de um filme sobre um dos contos de fadas mais chatos de todos, na minha humilde opinião.

Olha, como eu errei quando pensei isso. O filme Os Tênis Encantados (Sneakerella, 2022) combina os gêneros musical e comédia romântica para criar o que, sinceramente, é uma das cinco versões mais criativas e divertidas de ‘Cinderela’ que eu já tive o prazer de assistir. Na história acompanhamos nosso protagonista, El (interpretado por Chosen Jacobs, a quem podem conhecer dos filmes It: A Coisa), e seu sonho de criar um par de tênis único e mágico. Honestamente preciso começar falando sobre como nunca imaginei um sonho tão específico assim, muito menos esperaria entretenimento de um musical sobre um menino querendo criar um tênis icônico. 

Primeiro somos jogados no filme com uma sutil narração pela voz do ator Juan Chioran, interpretando no filme um jardineiro mágico chamado Gustavo. Esse filme merece muitos pontos só pela criatividade, porque estamos agora no terceiro parágrafo e falamos de Cinderela, de um menino que sonha em fazer tênis e num jardineiro mágico. As músicas do filme funcionam muito bem, talvez por trazer tanta inspiração do trabalho de Lin Manuel Miranda ao ponto de eu chegar a ter certeza quase absoluta sobre o envolvimento do mesmo na obra. Afinal, sabemos todos como a boa e velha Disney é quando um profissional dá certo, dificilmente vai deixar esse homem seis meses sem trabalho. 

Temos uma personagem lésbica, e é importante pontuar isso porque ela ser lésbica não afeta literalmente nada no conceito da narrativa e, mais uma vez, a Disney balança uma bandeira colorida sem permitir de verdade uma personagem não hétero ter uma vida amorosa mostrada. A personagem de Devyn Nekoda se chama Sami e está literalmente listada como a melhor amiga lésbica assumida de El. Seria um grande passo a dez anos atrás mas já tá na hora de deixar uma jovem lésbica beijar outra jovem lésbica na frente das câmera, Disney, ninguém aguenta essa inesgotável fonte de personagens não héteros cuja sexualidade fica em sinais ou em pequenas falas. 

É ridículo como o filme trabalha a magia presente no mesmo, mas é um ridículo proposital e ele funciona. Se você vai ver um filme baseado em Cinderela com um garoto cujo poder é “ler” qualquer pessoa baseada em seus tênis e não espera clichês “bestas” o problema está com você e não com o filme, sejamos bem sinceros. Existe toda uma construção desse nosso personagem principal, fazendo paralelos sim com Cinderela mas sendo capaz de dar mais vida e personalidade ao personagem. Não é fugir de seu padrasto o seu sonho, não é casar com uma princesa (ou príncipe se a Disney não fosse tão covarde e homofóbica), o filme relaciona o sonho de El ao elemento mais conhecido do clássico conto de fadas. 

Sabe o sapatinho? É sobre ele o filme, é sobre a importância dele existir e a história de como ele foi feito. Pegaram uma ideia muito simples e, como sabemos, já esvaziada e deram um novo sentido, capaz de capturar a audiência e entregar algo marcante. É uma combinação do timing cômico do filme com as músicas tão bem elaboradas, e até o romance tão clichê funciona muito bem. No espaço da “princesa” temos a filha de um famoso criador de tênis, ela se apaixona por El, mas o foco é como ela vê e acredita no talento dele. Kira King é interpretada por Lexi Underwood, seu arco é bem mais fraco em relação ao do protagonista, mas é engraçado quando em uma das cenas finais a mãe dela – interpretada por Yvonne Senat Jones – aponta o quanto parte dos problemas foram causados pela própria Kira e suas expectativas. A química de Lexi Underwood e Chosen Jacobs é uma das coisas a funcionar muito bem no filme, bem diferente da maioria das versões da Cinderela e do príncipe Encantado. 

Antes de finalizar, é interessante como o arquétipo relacionado a figura da Madrasta em adaptações de Cinderela são personagens maus, mesmo com suas motivações. Uma das versões mais humanas da Madrasta Má para mim foi a de Once Upon a Time (2011 – 2018), apresentada na última temporada da série. Então, chegando nesse filme não esperava me emocionar tanto com Trey, o padrasto de El interpretado por Bryan Terrell Clark, e seu cuidado, mesmo que severo, com seu enteado. Existem muitas formas de família e o filme não cai no enredo ridículo e batido de vilanizar a figura paterna de El só porque eles não compartilham o mesmo sangue. Trey se preocupa com o futuro de El, ele se preocupa em como o mundo dos sonhos e dos tênis podem desviar ele de uma estabilidade. Provavelmente seus pais tiveram a mesma preocupação e é aí que o filme acerta, conseguimos ver humanidade e reconhecer o personagem de Trey. 

Em resumo, é um filme engraçado, romântico e com números musicais mágicos, dirigido por Elizabeth Allen Rosenbaum e com um verdadeiro atleta da NBA em seu elenco na forma de John Salley, como Darius King – pai da personagem de Lexi Underwood. As referências descaradas ao clássico conto de fadas, as piadas feitas pelos próprios personagens quanto a isso, tudo isso remete muito ao clássico da Disney, Encantada (Enchanted, 2007). Elvin Ross trouxe uma incrível composição musical, digna de ser ouvida várias e várias vezes, como se os filmes de Kenny Ortega e os de Lin Manuel Miranda tivessem tido um bebê. Os Tênis Encantados está disponível no Disney +.


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