Se você é fã de filmes de terror certamente deve ter ouvido falar de O Telefone Preto (The Black Phone, 2022), filme que marca o retorno de Scott Derrickson (Exorcismo de Emily Rose, Doutor Estranho e A Entidade) ao gênero. Estrelado por Mason Thames, Madeleine McGraw e Ethan Hawke. Lançado em Setembro de 2021 nos Estados Unidos, o filme chega aos cinemas brasileiros no dia 21 de julho, acompanhado de muita expectativa.
O longa, inspirado no conto original de Joe Hill, acompanha Finney e Gwen Shaw, dois irmãos que vivem em uma pequena cidade onde crianças começam a ser raptadas e assassinadas de forma misteriosa. Finney se torna uma das vítimas e a partir desse ponto passamos a acompanhar as suas tentativas de fuga em paralelo à jornada de sua irmã reunindo pistas para tentar encontrá-lo. Toda essa corrida contra o tempo é envolta em uma atmosfera densa com elementos de fantasia.
A sequência de abertura é essencial para entendermos os mecanismos narrativos que serão utilizados ao longo da obra. O espectador é apresentado a um protagonista tímido, inseguro e observador em uma cena com um único diálogo. Logo, para entendermos a trama e suas minúcias, precisamos assumir a postura observadora e atenta de Finney, pois cada detalhe é importante seja para conhecer mais sobre os irmãos, suas personalidades, sonhos e criação, como para guardarmos detalhes que serão essenciais para a sobrevivência de Finney e para a resolução do caso.
Em contraste com o irmão, Gwen não tem papas na língua, é bastante decidida e nunca mostra vulnerabilidade, exceto ao lado dele. Inicialmente ela é apresentada como uma personagem espirituosa, funcionando até como alívio cômico em certos momentos, mas ao observar o ambiente opressivo e disfuncional onde eles estão inseridos, criados pelo pai abusivo que se tornou alcoólatra após perder a esposa, fica claro que ambas as personalidades dos irmãos são na verdade armaduras, mecanismos de defesa. E neste ponto o filme tem um grande êxito ao mostrar as diferenças entre essas duas crianças e como uma criação abusiva, violenta e caótica as afetou de formas distintas.
Falando em violência, Scott não pegou leve ao trazer esse elemento para sua obra. Não espere por cenas muito gráficas e exageradas ao estilo ‘gore’, essa violência é trabalhada de forma crua e sem floreios de uma forma que remete muito ao subgênero do horror ‘Novo Extremismo Francês’, especialmente o estarrecedor Eles (Ils, 2006), da dupla David Moreau e Xavier Palud, pois essa violência parte principalmente das crianças, em cenas como brigas de rua e bullying na escola. Porém, a grande falha nessa abordagem sobre bullying está no arco de Finney, que cai naquele clichê sobre o personagem cis-hétero que, por não se encaixar no estereotipo da masculinidade, passa a sofrer na escola com ofensas homofóbicas. Isso é tratado de maneira rasa, sem propor uma reflexão e trazer uma nova visão sobre clichê que se apropria de uma vivência dolorosa para muitos LGBTQs como mero artifício narrativo.
Com exceção da sequência de abertura, que por coincidência mostra a primeira vítima, Bruce, que é a única criança que vemos crescer em um ambiente saudável, as cenas que mostram as crianças são ambientadas em um cenário de hostilidade e abandono. Elas vivenciam o mundo sozinhas, obrigadas a amadurecer cedo demais, dando de cara com situações que não estão preparadas para lidar e não teriam que enfrentar sozinhas se tivessem alguma figura parental presente. Durante todo o desenrolar são as crianças que realizam um papel de fato efetivo em descobrir o que está acontecendo. Gwen procura ajuda dos adultos para descobrir o que aconteceu com seu irmão, mas acaba precisando agir por conta própria, o que a coloca em um cenário de grande risco. Da mesma forma que Finney conta com a ajuda das crianças que foram vítimas do assassino e que se comunicam com ele através do telefone preto sem fio no porão em que está trancado.
O elemento fantástico no filme é trabalhado com muita atenção para não apagar a veracidade dos temas abordados ali, entrando como a principal munição dos irmãos perante aquela ameaça e funcionando como forte recurso narrativo. É através dos detalhes presentes nos sonhos de Gwen e das conversas que Finney tem no emblemático telefone que conhecemos mais sobre as vítimas e que Finney consegue pistas que permitem que ele ganhe tempo para escapar.
A fórmula silenciosa e discreta de dar atenção aos detalhes adotada em O Telefone Preto é de grande eficácia por construir bem seus personagens e facilitar a imersão em um ambiente denso, desesperador e imprevisível. Infelizmente, quando a mesma estrutura é aplicada ao Sequestrador, o vilão interpretado por Ethan Hawke, o resultado são apenas pistas soltas sobre um possível background do vilão que não é, de forma alguma aprofundada. O trabalho de direção de arte é brilhante aqui, trazendo elementos como a máscara, a van e os balões pretos para criar um assassino aterrorizante, mas não é suficiente para suprir a expectativa criada sobre o desenvolvimento do personagem, deixando O Sequestrador sem nenhuma camada abaixo da sua aura ameaçadora e predatória.
Com uma trilha sonora tensa e experimental, uma fotografia apática que realça a hostilidade vivenciada pelas crianças e protagonistas excelentes, O Telefone Preto justifica muito bem a repercussão que gerou mundialmente e toda a expectativa criada por fãs de horror de todo o Brasil. Nessa obra, Scott Derrickson afirma seu lugar como um grande nome do gênero e mostra, mais uma vez, sua admirável versatilidade.
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Travesti não binária, artista multilinguagens e gastronoma com foco na cultura alimentar cearense. Desde criança encontrou na fantasia e no horror espaços de fuga de uma dura realidade e hoje, enquanto escritora e produtora audiovisual, busca contar narrativas sobre transgeneridade. Assina a direção e montagem do curta Ordem das Magnólias e de suas performances como a drag queer YÜMMY, além outros trabalhos com figurino, produção de trilha sonora e pós produção.