Hacks – Ser mulher não é piada

É impossível falar de Hacks (2021 -) sem prestar tributo àquela que é a razão de ser da série e o principal motivo do seu sucesso: Jean Smart. Não é menosprezando o trabalho dos criadores ou do restante do elenco (todos ótimos, por sinal, desde os fixos até as participações especiais). No entanto, sem Smart, muito do que é a série, dos subtextos e nuances apresentados, se perderia, visto que é preciso um talento absurdo para trazer ao público a história de uma mulher que pode causar, ao mesmo tempo, raiva e empatia, sem transformá-la em uma caricatura da megera rica ou cair num amontoado de clichês. 

Não é a primeira vez que essa veterana nos deixa encantados com uma atuação superlativa. Desde que se tornou mais conhecida do público televisivo como a primeira-dama Martha Logan em 24 Horas (2001-2010), ela vem colecionando papéis de destaque, mas somente agora, aos 70 anos, conseguiu um merecido protagonismo, inédito em sua carreira.

A premissa de Hacks traz um clássico conflito de gerações: Ava (Hannah Einbinder) é uma jovem roteirista de comédia que twitta uma piada infeliz e, por que não dizer, homofóbica, sobre um congressista estadunidense e é “cancelada” por isso, perdendo chances de trabalho e se tornado mal vista pelo meio artístico de Los Angeles. Colabora para a derrocada dela o fato de Ava ser, muitas vezes, autoindulgente e egoísta. Sem perspectivas reais de emprego, ela acaba indo trabalhar para Deborah Vance (Jean Smart), lendária comediante stand up, cujo show fixo em Las Vegas pode estar com os dias contados devido à sua incapacidade de reinventar suas piadas e, consequentemente, renovar seu público. Como Ava representa uma nova geração da comédia, Deborah é convencida a utilizá-la para renovar seu show. 

Por essa sinopse, é possível perceber que o ponto de partida de Hacks não tem nada de inovador. São duas pessoas de personalidade considerada forte e difícil, em uma relação forçada e conflituosa que, eventualmente, irão se aproximar e desenvolver um relacionamento de afeto mútuo. Ou seja, já vimos esse caminho ser traçado outras vezes. No entanto, a atuação de Jean Smart é tão extraordinária que eleva não só o texto (que, geralmente, vai do bom ao ótimo, ainda que escorregue algumas vezes) como também o trabalho de seus colegas de cena. Ela consegue transformar Deborah em uma mulher real, ambiciosa, egocêntrica, mas também generosa, sensível, que foi obrigada a cavar seu caminho no show business em meio a muito machismo, mas que, mesmo assim, não se põe num lugar de vítima por isso. Uma mulher imperfeita, assim como todas as mulheres reais são. Vemos, no decorrer de toda a primeira temporada, todo um processo de desconstrução e reconstrução dessa mulher, alguém que traz em si marcas de sua vivência mas que mesmo assim não deixou a vida (e a sociedade) determinar os caminhos que poderia trilhar. Deborah sabe quem é e sabe o que quer. 

Ava, por outro lado, é seu contraponto e complemento. Uma mulher consciente do próprio talento (o que a faz ser, muitas vezes, arrogante), mas que tem sérias dificuldades em estabelecer objetivos de vida, em tomar decisões, com uma sexualidade fluida, que pode facilmente ser confundida com sua incapacidade de criar vínculos afetivos duradouros. É um típico retrato da geração Z. Hannah Einbinder demora um pouco a encontrar o tom certo para a personagem, o que só ocorre ao final da primeira temporada. Na maior parte dos primeiros episódios, ela oscila entre fazer cara de choro ou se mostrar enérgica demais. Não é nem de longe um trabalho ruim – e devo dar o crédito a ela por não se intimidar perante Jean Smart, ainda que seja visível sua luta em não deixar a colega dominar totalmente a cena –, mas é perceptível que ela tem uma certa dificuldade em se apropriar da personagem. No entanto, quando isso acontece, a série atinge seu melhor momento, e o que já era bom, chega ao nível da excelência na segunda temporada. Nesta, sem dar muitos spoilers, Deborah decide levar seu show numa turnê pelos EUA e, como todo bom road movie, uma série de situações no caminho permite que elas se conheçam e se reconheçam, num processo que atinge o ápice num final de temporada que mais parece o final da série.

Outra das qualidades de Hacks é que até mesmo as tramas secundárias são interessantes e não buscam ofuscar a narrativa principal, mas sim reforçar alguns temas, tentando não cair no óbvio. Não há barrigas nem fillers (os típicos episódios onde quase nada que acontece agrega à história central, servindo mais como tapa-buracos), mas sim uma narrativa que vai crescendo episódio a episódio.

Apesar de existir a confirmação de uma terceira temporada, ao final da segunda ficou a sensação de que a história que precisava ser contada, se encerra ali, de forma orgânica e excelente. Ainda que eu jamais venha a reclamar de ter mais de Jean Smart e sua maravilhosa Deborah Vance, surge o medo de que possam estragar tudo esticando a série além do necessário. De qualquer modo, vou seguir acompanhando essas mulheres incríveis e suas vidas extraordinárias.


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