Apesar das muitas polêmicas envolvendo o Oscar (que vão desde racismo e misoginia à entrega de prêmios para assediadores e delatores de “comunistas”), o evento continua sendo a maior referência quando se trata de premiações cinematográficas e ainda causa entusiasmo ao anunciar seus indicados, todos os anos. Mesmo que não seja sempre de forma positiva, a Academia não deixa de nos surpreender. Algumas vezes há acertos, como, por exemplo, quando premiou Parasita (Gisaengchung, 2019) com a estatueta de melhor filme, em 2020. Ou quando anunciou La La Land: Cantando Estações (La La Land, 2016) como vencedor para o mesmo prêmio e, logo em seguida, avisou que foi um engano e que a nomeação deveria ir para Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight – 2016).
Agendado para acontecer no final deste mês de março, o Oscar me apresentou uma grata surpresa agora em 2022: a animação Flee: a Fuga (Flugt, 2021). Dirigida pelo dinamarquês Jonas Poher Rasmussem, o documentário conta a história de um amigo do diretor, que é introduzido com o pseudônimo de Amin Nawabi. O personagem, junto com sua família, vive a desventura de fugir do Afeganistão e tentar ser aceito como refugiado na Rússia dos anos 1990, de onde precisam partir para outro país antes de serem presos. Enquanto isso, tem que lidar com os dilemas pessoais de ser um homem gay e de, até aquele momento, não ter contado sua real história para o noivo, com quem está prestes a se casar.
Quando me sentei em frente à tela para assistir ao documentário, eu não fazia ideia do que esperar. Flee chegou até mim apenas como “a primeira animação com temática LGBT a concorrer ao Oscar”. Não era lá muita informação… Mas o filme acabou fazendo eu me dar conta de que, apesar de viver rodeado de informações (tantas que não consigo sequer absorver seu conteúdo na íntegra), há coisas das quais, como qualquer outra pessoa, eu me encontrava completamente alheio.
A Guerra do Afeganistão teve início em 1979 e se estendeu por dez anos. Tendo sido iniciada com a invasão da União Soviética ao país, deixou consequências penosas para ambas as nações. Estima-se que pelo menos 1 milhão de afegãos foram mortos. E esse é o cenário de partida da história de Amin, que teve seu pai levado pela polícia quando ainda era uma criança.
Com as dificuldades impostas pela guerra e o receio de que seu irmão mais velho fosse “recrutado” à força pelo exército, a mãe de Amin – e de seus 4 irmãos, sendo duas mulheres – resolve sair do país fazendo acordos com “coiotes”, os traficantes de pessoas. Inicialmente, a família vai ao encontro do irmão mais velho, que já tinha um emprego na União Soviética e, de lá precisam partir para outro país, onde podem pedir por asilo como refugiados (mas não antes de juntar dinheiro pra isso).
Paralelo a isso, acompanhamos a história de descoberta da sexualidade do protagonista, seus conflitos internos sobre como encarar a família religiosa e de auto aceitar-se, a primeira vez em que se vê atraído por outro rapaz e que tipo de sensações o acompanhavam durante sua fuga. Não obstante, como a história é contada em forma de flashbacks, acompanhamos também o drama de Amin por nunca ter se sentido confiante o suficiente para contar sua jornada ao atual noivo, que está às voltas para comprar uma casa onde os dois viveriam juntos. Insegurança esta, causada pelos traumas que o personagem sofreu ao longo de sua jornada, que nos é contada enquanto ele relata para Jonas o que aconteceu.
Flee é uma animação um tanto “seca”. Ela rasga nossa alma, pois, não faz rodeios, não usa metáforas. Somos apresentados à realidade da guerra e a como esse processo pode dizimar uma família que luta, acima de tudo, pela sobrevivência.
As dificuldades para se manter clandestinos em um país, para silenciarem-se diante de injustiças cometidas a terceiros, sob a ameaça de serem deportados. O filme denuncia a corrupção da polícia russa, crimes de estupro e tortura, e até a austeridade dos traficantes de pessoas, que tentam transportá-las para outros países de maneira penosa, presas em contêineres ou em porões de barcos que sequer suportam viagens muito longas.
É sempre difícil ter que encarar a tangibilidade da guerra. E o documentário de Rasmussem nos oferece uma experiência vívida, ainda que em forma de animação. Comovente, sensível, didático e, ao mesmo tempo, incômodo e intenso, Flee já recebeu, merecidamente, 165 indicações a prêmios, dos quais, venceu, até agora, 69. Entre elas, o Grande Prêmio Crystal do Festival de Annecy, considerado o Oscar das animações.
Com uma hora e meia de duração, Flee já fez história ao ser o primeiro filme a concorrer ao Oscar em três categorias tão distintas: Melhor Documentário, Melhor Animação e Melhor Filme Internacional, pela Dinamarca. Sua estreia mundial foi no Festival de Cinema de Sundance, em 28 de janeiro do ano passado. No site dos tomates, ele possui 98% de aprovação e sua classificação no Metatric chega a 90, de 100.
Muito mais do que recomendado, Flee: A Fuga, é um filme perfeito para nos darmos conta da atual situação que nos encontramos, ainda que de maneira tão indireta.
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Gay, Nerd, jornalista e podcaster. Chato o suficiente pra achar que pode se resumir em apenas quatro palavras. Fã de X-Men e especialista em Mulher-Maravilha. Oldschool – não usa máquina de escrever, mas bem que poderia. There’s only one queen, and that’s Madonna!