Quem nunca pensou em viver outra vida? Ser outra pessoa? Ou até mesmo viver em um mundo fantástico e ser uma criatura mágica? E não é assim que muitos de nós nos comportamos na internet, nas redes sociais, no games online? Fugindo de uma realidade melancólica, dolorosa, triste, para criamos personagens que vivem em mundo perfeito, fantástico, cheio de vida e alegria. Enquanto outros utilizam essas ferramentas e possibilidades para se esconder e revelar uma faceta implacável e cruel, se aproveitando do pouco controle que a internet suscita para derramar seu ódio, suas mágoas, suas angústias.
Em Belle (Ryû to Sobakasu no Hime, 2021), novo longa animado de Mamoru Hosoda, Suzu, uma adolescente introspectiva e com um trauma causado por uma dolorosa perda em seu passado, descobre em um aplicativo de realidade aumentada chamado “U” esta oportunidade de ser uma outra pessoa. Neste novo universo ela é Belle, uma deslumbrante cantora, com uma voz inigualável, e que acumula centenas de fãs e haters. E é através de Belle que Suzu consegue colocar para fora uma de suas grandes paixões: cantar. Porém, a fama no mundo virtual, acentua ainda mais a timidez da garota, agora somada ao medo de ser descoberta.
Tudo se complica ainda mais quando Belle encontra em “U” um outro “jogador”, com uma aparência sinistra e perseguido por uma espécie de equipe de super-heróis daquele mundo. Esta fera consegue fugir e derrotar vários de seus perseguidores, mas antes deixa em Belle um sentimento de empatia e de que ela deveria saber mais sobre ele. Belle então descobre que existe uma já antiga busca pela identidade da criatura no mundo real, criando toda uma mística sobre sua existência, tornando-o de certa forma um párea em “U”. É neste momento que fica clara a reimaginação do famoso conto de fadas, com todos os simbolismos e reflexões que suas outras versões trazem, como a crítica do julgamento pelas aparências e a perseguição de tudo que saia dos padrões que nos são impostos. Mas o filme de Hosoda amplia estas discussões e engloba várias críticas às relações virtuais e a como lidamos com isto hoje em dia.
Mas a maestria do animador, que também assina o roteiro, está não apenas em revisitar o clássico e mesclá-lo com novas metáforas, mas também em não centralizar o filme apenas neste ponto. Mesmo que Belle seja a “princesa” do conto de fadas, é Suzu a protagonista do filme, e é nela que se desenvolvem as questões mais importantes da narrativa. A jornada de autodescoberta e de perceber seu próprio potencial, além da superação de seu trauma, é algo que o filme trata com uma delicadeza e em um ritmo que quase chega a ser cansativo, mas que é sempre resgatado pelas várias camadas que vão se revelando pouco a pouco.
E é interessante observar como o estilo da animação difere o mundo virtual do real, trazendo neste um traço em 2D mais tradicional, enquanto em “U” utilizam-se efeitos tridimensionais que enriquecem aquele ambiente e toda a ação que nele ocorre, além de dar um ar mais “tecnológico” para aquele metaverso. Claro que senti falta de um melhor desenvolvimento deste mundo virtual, mas na forma como é representado serve bem ao propósito da narrativa. Outro destaque é a trilha sonora e as músicas cantadas por Belle/Suzu, fundamentais para que acreditemos no dom da menina ao mesmo tempo em que funciona como a cereja do bolo para dar o tom de conto de fadas para o filme.
Belle é uma excelente releitura do clássico, mas é ainda mais do que isso, nos colocando reflexões sobre nossas relações no mundo contemporâneo e em como lidamos com nossas próprias angústias. Nos ensina que não podemos fugir de quem nós somos e que por mais que nos cubramos com uma carapaça, seja ela belíssima ou monstruosa, o que está dentro é o que importa.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.