É extremamente comum, no cinema estadunidense, que atores e atrizes que desejam ser levados “a sério” (seja lá o que for que isso queira dizer) busquem projetos que os levem ao tão celebrado Oscar. Independente do alcance da fama desses atores, e do reconhecimento de público e crítica da qualidade de seus trabalhos, ganhar a cobiçada estatueta é a maior forma de validação que eles podem conceber. Isso levou a criação da narrativa de que certos atores, principalmente aqueles com algumas indicações e/ou com uma fama de nível global e uma carreira celebrada, devem, em algum momento, ganhar um Oscar. Foi o que aconteceu com Leonardo Di Caprio, Julianne Moore, Kate Winslet, Julia Roberts, Denzel Washington, entre outros, e também é o motivo do surgimento, todos os anos, dos “filmes de Oscar”, que, geralmente, buscam seguir algumas características que teoricamente seriam mais agradáveis aos votantes e poderiam facilitar uma vitória na premiação. Claro que criar filmes que busquem tão calculadamente algo que deveria vir naturalmente, como consequência da qualidade da obra, acaba, na maioria das vezes, gerando aberrações, filmes sem alma e de impacto reduzido, que terminam por se tornarem esquecíveis algum tempo depois da exibição.
Infelizmente, esse é o caso de King Richard – Criando Campeãs (King Richard, 2021), obra projetada com o único propósito de dar um Oscar para Will Smith, um ator que atravessa três décadas de carreira com vários sucessos comerciais e de crítica, e com uma fama que raras vezes foi abalada, mesmo passando por fracassos, mas que possui apenas duas indicações ao Oscar de melhor ator, sem nunca ter vencido o prêmio. Só a vontade de celebrar uma carreira e conseguir uma validação dos seus pares justifica uma obra tão medíocre conseguir ser considerada para premiações tão importantes.
Vamos à trama, baseada em fatos: Richard Williams (Will Smith) e sua esposa Brandy (Aunjanue Ellis) são os pais das futuras lendas do tênis Venus (Saniyya Sidney) e Serena (Demi Singleton) Williams. Do ponto de vista de Richard, vemos a infância e o início da adolescência das tenistas e todo o esforço dos seus pais em levá-las à fama e ao sucesso que elas realmente iriam ter. É uma clássica história de superação, do enfrentamento da pobreza e do racismo, em um típico exemplo de como alcançar o propagado “sonho americano”. Esse tipo de narrativa, como já está desgastada, necessita trazer para o espectador componentes emocionais muito fortes que façam com que nos sintamos tão envolvidos na obra que acreditemos que aquilo poderia, de fato, acontecer com qualquer um de nós. É um tipo de história que exige um nível maior de identificação que nos faça superar o próprio ceticismo e cinismo e nos permita acreditar. Um exemplo de sucesso nesse quesito é a série This is Us (2016-2022), que busca com muita intensidade manipular os sentimentos do espectador sem, no entanto, sacrificar a coerência narrativa para isso ou mesmo soar forçada.
King Richard, por outro lado, possui dois problemas básicos que impedem que alcance a excelência de obras como This is Us: primeiro, a escolha do protagonismo. Com duas personagens que alcançaram feitos tão incríveis quanto Venus e Serena Williams, a decisão de focar no pai delas, um homem sem nada de especial a não ser a teimosia e que, assim como muitos pais ao redor do mundo, usou as filhas para realizar um sonho que na verdade era dele, sem permitir que elas desenvolvessem os próprios sonhos e escolhessem o próprio caminho, é algo que só pode ser explicado pelo fato desse mesmo pai ser interpretado por Will Smith. Fica nítido, no decorrer das cerca de 2h20 de filme, que Richard é um personagem que vai do irritante ao egoísta, e que poucas características dele nos permitem uma identificação. Ele só se torna mais interessante quando o filme apresenta o personagem como alguém que luta contra a sensação de impotência e a invisibilidade que o mundo lhe impõe por ser negro e pobre. Assim, fica claro que mais que uma história de triunfo perante uma sociedade opressora, King Richard celebra a força da frustração e como ela pode impulsionar um indivíduo a moldar não somente sua vida, mas a de pessoas próximas, em função disso.
Além de lidar com o foco em um personagem problemático – e aqui entendam que estou falando do personagem, não da figura real, pois, por mais próximos que eles sejam, não podemos cair na tentação de achar que uma ficcionalização de alguém real é, de fato, esse alguém –, no campo estético o filme sofre de uma direção completamente sem personalidade, que só consegue mostrar alguma vida nas cenas dos jogos, mais pelo que essas cenas significam para os personagens que pela direção em si, pois tudo é filmado da forma mais burocrática possível. Outro ponto a se destacar é que Will Smith, salvo raros momentos, constrói o personagem com uma série de tiques e de forma óbvia e, se chegamos a nos importar em algum momento com ele, isso se deve mais ao carisma do ator que pela atuação em si. Para o objetivo dele (o Oscar), no entanto, é um prato cheio, pois é uma atuação que chama a atenção o tempo todo para si, em vez de servir para contar a história.
Para não dizer que temos somente pontos negativos, a Brandy de Aunjanue Ellis é uma figura que desperta muito mais empatia e interesse que o próprio protagonista, e a atriz faz um excelente trabalho ao não se deixar ofuscar pela presença de um astro como Smith e dar o máximo de facetas à personagem que o filme permite. Outro destaque é Saniyya Sidney como Venus, numa atuação delicada e que se impõe sem precisar deliberadamente chamar a atenção para si.
No mais, é triste ver o potencial dramático que o filme sugere ser desperdiçado por um objetivo tão fútil quanto vencer premiações. Apesar do longo caminho até a próxima cerimônia do Oscar, tudo indica que Will Smith tem grandes chances de alcançar o que pretende (e se outros atores piores, em atuações mais medíocres, conseguiram, não posso dizer exatamente que seria injusto Smith vencer). Porém, como em muitos casos de filmes criados com a mesma intenção, essa é uma obra esquecível e que, no fim das contas, só serve mesmo ao ego de Will Smith.
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Cineasta e roteirista, formado em Letras e graduando em Cinema, respira literatura, filmes e séries desde que se entende por gente. É viciado em sci-fi e terror, e ama Stephen King, Spielberg e Wes Craven. Tem mais livros em casa, e séries e filmes no computador de que seria humanamente possível ler e assistir, mas não vai desistir de tentar. Não consegue lembrar o que comeu ontem, mas sabe decorado os vencedores do Oscar de melhor atriz do últimos trinta anos (entre outras informações culturais inúteis).