Uma garota de uma cidade do interior da Inglaterra consegue uma vaga para estudar em uma universidade em Londres e realizar seu sonho de se tornar uma estilista. Porém, ao chegar à capital, se depara com a dura realidade da “cidade grande” e percebe o quão pode ser difícil e solitário lidar com a ganância das próprias colegas de curso, a convivência no ambiente movimentado de uma residência estudantil e a dura realidade de ter que se manter enquanto estuda. Isso tudo atrelado a um histórico de problemas familiares mentais e à visões da mãe, já falecida, o que confunde a garota (e o público) sobre ela sofrer de algum nível de esquizofrenia – que pode ter sido engatilhado pelo bullying sofrido já nos primeiros dias de faculdade – e aos sonhos que se misturam à realidade, que a protagonista passa a ter ao se mudar para uma quitinete no periférico bairro Soho, onde ela vivencia a história de uma garota que também buscava o sonho de carreira (esta, como cantora) na Londres da década de 1960. Parece muita coisa? É porque é.
Noite Passada em Soho (Last Night in Soho, 2021) é o filme mais recente do diretor Edgar Wright, que você deve conhecer pelos ótimos Todo Mundo Quase Morto (Shaun of the Dead, 2004), Em Ritmo de Fuga (Baby Driver, 2017) e Scott Pilgrim Contra o Mundo (Scott Pilgrim vs. The World, 2010) – vou registrar aqui que amo os três. Em sua primeira empreitada no gênero de terror ele conseguiu quase tudo: uma fotografia maravilhosa, exageradamente neon, que nos remete à vida (supostamente) glamorosa e festeira da capital inglesa; as atuações estonteantes de Thomasin McKenzie, que você deve ter visto em Jojo Rabbit (2019), e Anya Taylor-Joy, famosa por O Gambito da Rainha (The Queen’s Gambit ,2020) e A Bruxa (The VVitch, 2015); e uma trilha sonora tão importante para a história quanto todo o resto, que consegue envolver o espectador tanto quanto tudo que acontece ao redor (fórmula que o diretor já havia experimentado em Baby Driver). Tudo isso em um thriller que poderia ser muito melhor aproveitado, não fosse a quantidade enorme de temas debatidos durante a história. Tantos, que mal conseguimos nos ater a um deles. E isso afeta profundamente nossa empatia. Ao final, resta a sensação de que havia muito a ser dito, mas tudo ficou superficialmente jogado na tela – a não ser pelo plot principal.
A problemática do excesso de assuntos pode ser percebida na longa introdução do filme. O primeiro ato toma quase metade da película. O expectador desavisado, que não tenha visto o trailer, certamente vai demorar bastante até saber que está vendo um filme de terror – mesma dinâmica do trailer, inclusive, que já dava uma prévia de como se desenrolaria a história. Além disso, já não é mais crível nos dias atuais o tipo “jovem camponesa de coração nobre que vai todos os dias ao bosque buscar lenha”, personalidade dada a Eloise, vivida por Thomasin, que, a despeito do que ela poderia ter pesquisado na internet ou dos conselhos que sua própria avó lhe deu antes de viajar, chega à capital com a pureza de uma “Dorothy” ao desembarcar em Oz.
Nesse início de jornada, Eloise se depara com um motorista de taxi assediador, colegas de quarto que são invejosas e tóxicas, que tentam humilhar a garota por suas roupas e por seu jeito simples e a jogam em uma noite de farra, regada a muita bebida e a caminhadas pela madrugada londrina em busca de pubs. O autor ainda nos alfineta com cenas de preconceito racial e uma recorrente preocupação com saúde mental.
Quando começam os flashbacks em forma de sonhos, Eloise encarna Sandie (Anya Taylor-Joy) e desmascara o charme das noites da década de 1960, revelando uma punição severa à ambição da jovem que sonhava em ser cantora nos bares noturnos. E a gente ainda pode pensar na solidão da senhora idosa, amarga, que aluga quartos para moças solteiras e no quanto é oneroso para uma estudante poder viver em Londres.
Há muito no que se pensar. Tanto, que quase nenhum desses assuntos é aprofundado na trama.
No entanto, apesar dessa “farofa” de temas que pipocam cena após cena, “Noite Passada em Soho” tem pontos fortes. É impossível não se envolver na ambientação. As cores fortes, o figurino e a trilha sonora (principalmente a trilha sonora) dão um tom de espetáculo ao filme, quase transformando ele em um musical. Anya é simplesmente fantástica! A atriz tem um magnetismo ímpar e suas expressões, moldadas em um rosto de “boneca de porcelana”, nos fazem sentir uma empatia instantânea pela personagem.
Há uma viagem boa, psicodélica, entre uma noite e outra, que nos faz aguardar com ansiedade que a próxima noite chegue e Eloise volte a sonhar novamente para que assim possamos descobrir o que de fato aconteceu no passado – e o porquê de as personagens terem essa estranha ligação. O figurino de Sandie é um caso à parte que poderia ser debulhado sozinho em um único artigo.
Os jumpscare são bem colocados e chegam com a surpresa necessária. Não há exageros no terror nem apelo para o sobrenatural. O mistério é bem dosado e consegue segurar a curiosidade da audiência. Há um maravilhoso plot twist no último ato, nada que traga nenhuma epifania, mas também não beira a obviedade.
Apesar da crítica especializada ter sido bastante positiva, o filme teve uma bilheteria de estreia fraca nos EUA, arrecadando apenas US $4,2 milhões de dólares – número inferior à “Baby Drive”, por exemplo. Talvez Edgar ainda não esteja pronto para o gênero, apesar da boa tentativa.
Caso o roteiro não convença – a premissa é boa, eu asseguro, só a execução que, bem, deixo a cargo de você decidir por conta própria – o filme vale pelas ótimas atuações, pela presença do personagem misterioso de Terence Stamp, que deu vida ao icônico General Zod em Superman II: A Aventura Continua (Superman II – 1980), pela redenção dos personagens no desfecho e pela incrível trilha sonora que eu já fiz questão de colocar no meu streaming de música. Ao que parece, todo o resto vale à pena, se você não ligar muito pra história.
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Gay, Nerd, jornalista e podcaster. Chato o suficiente pra achar que pode se resumir em apenas quatro palavras. Fã de X-Men e especialista em Mulher-Maravilha. Oldschool – não usa máquina de escrever, mas bem que poderia. There’s only one queen, and that’s Madonna!