Uma Noite de Crime: A Fronteira – Um pesadelo perigosamente próximo

É sempre interessante perceber como a ficção científica, o terror e a fantasia, mesmo sendo considerados muitas vezes gêneros menores, apenas entretenimento, – tanto pela maior parte do público como por parte da crítica – são os que melhor representam aspectos da sociedade que a maioria das pessoas evita encarar. Em grande parte, esses gêneros tocam em feridas sociais sem tentarem educar o espectador, e refletem o momento sem se tornarem datados. Isso vale tanto para a produção escrita quanto audiovisual, visto que as melhores obras desses gêneros sobrevivem ao teste do tempo com muito mais facilidade que as de outros gêneros mais “nobres”, como o drama. Assim, é sempre com essa reflexão em mente que busco encarar esses tipos de filmes. Tento entender que aspectos sociais eles podem trazer, mesmo que involuntariamente, e se isso é coerente com a narrativa apresentada. 

Um dos casos recentes mais bem-sucedidos em relação a isso é a série de filmes Uma Noite de Crime (The Purge, 2013-2021), que já conta com cinco obras para o cinema e uma série de TV. Partindo de um conceito tão absurdo quanto assustadoramente possível de acontecer, é apresentado um EUA de um futuro próximo no qual todos os anos, num período de 12h (entre 19h de um dia e 7h do seguinte), conhecido como Dia do Expurgo, o governo permite que os cidadãos cometam qualquer tipo de crime. Assim, estão liberados, sem qualquer punição, assassinatos, estupros, e vários outros atos de violência. Segundo o filme, essa seria uma forma de controlar o famoso instinto violento do ser humano, mais notadamente da sociedade dos EUA, cujo amor às armas e à violência são famosos no mundo inteiro. É uma ideia perceptivelmente absurda, mas com a forte ascensão da extrema direita nos últimos anos não é possível, infelizmente, dizer que é algo impossível ou mesmo improvável de acontecer. 

A partir disso, todos os filmes da série sempre buscaram trazer tanto questões de classe – mostrando que os pobres, incapazes de arcar com uma defesa própria eficiente, seriam alvos preferenciais daqueles que possuem poder e dinheiro para caçá-los – quanto questões raciais e políticas. Isso, sem deixar de lado o objetivo maior das obras, que é provocar tensão e medo. Apesar de todo o aspecto de filmes de baixo orçamento – o que de fato eles são – e de não se aprofundarem nos temas que tocam, são filmes que cativaram o público, especialmente o de terror, por entregarem exatamente isso que foi dito: entretenimento com aquele algo mais que pode nos trazer alguma reflexão. E, mesmo com uma estrutura básica que se repete, na qual temos personagens que são desfavorecidos e/ou não compactuam com o Expurgo lutando para sobreviver a essa noite, chega a ser impressionante como a cada capítulo são acrescentadas informações a esse mundo fictício que o tornam mais completo, sem contradizer o que é mostrado em filmes anteriores. Esse tipo de unidade narrativa é raro em franquias cinematográficas, particularmente nas de terror, que, na ânsia de conquistar o espectador, muitas vezes desvirtuam seus conceitos originais até o ponto destes se tornarem incoerentes em relação ao apresentado na obra original. Essa coerência que Uma Noite de Crime possui se deve ao controle de seu criador, James DeMonaco, que, mesmo quando não dirige, tem poder decisivo no que é apresentado.

Isso nos leva ao quinto capítulo desta “saga”, Uma Noite de Crime: A Fronteira (The Forever Purge, 2021), que traz um casal mexicano, Adela (Ana de La Reguera) e Juan (Tenoch Huerta) que, fugindo da violência dos cartéis de drogas de seu país, acaba por entrar ilegalmente nos EUA. A narrativa, então, passa a acompanhar esses personagens, que dividem o protagonismo com Dylan (Josh Lucas), filho de um fazendeiro texano para quem Juan passa a trabalhar. Apesar de terem ido em busca do “sonho americano”, Adela e Juan possuem atitudes diferentes em relação ao país que vivem: enquanto ela busca a qualquer custo se adequar, ele prefere manter vivas as suas raízes. Esse tema, assim como o tratamento que a sociedade dos EUA dá aos imigrantes e aos indígenas são as bases temáticas do filme, mas assim como nos anteriores, são tratados de forma superficial. 

A trama se desenvolve mesmo a partir do momento em que o Expurgo – que volta a ser praticado depois de ter sido abolido ao final do terceiro filme – termina oficialmente, mas, devido a ação de grupos extremistas, a perseguição e a matança continuam, o que faz com que as cenas de ação e suspense ocorram à luz do dia e em locais fora do perímetro urbano, situação inédita nos filmes.

Numa franquia já tão longa, era esperado sinais de desgaste, mas apesar do roteiro repetir a fórmula e de um ou outro deslize, como algumas situações que exigem demais da suspensão de descrença e jump scares desnecessários, é um filme bem conduzido, com boa noção de ritmo e de suspense, com  destaque para uma ótima cena em plano-sequência. No elenco, formado em sua maioria por nomes desconhecidos, não há nenhum destaque nas atuações, mas, exceto por Josh Lucas, um ator limitadíssimo, os outros entregam performances sólidas, condizentes com o que o roteiro pede.

Ainda que bastante subestimada pela crítica – e por parte do público também – esse mais recente exemplar de Uma Noite de Crime se mostra um trabalho interessante o suficiente para justificar a sua existência para além de um mero caça-níqueis. E isso é muito mais do se pode dizer de outras franquias, sejam de terror ou não, que são espremidas até a última gota com a única intenção de encher os bolsos de seus produtores e cansar o espectador.


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