Rua do Medo: 1666 – Parte 3 – Tudo se encaixou

Chegamos ao fim do film trilogy event da Netflix. Foram três semanas interessantes cheias de expectativas para esse momento onde ficaria claro se Rua do Medo conseguiria se fechar de modo agradável e coerente. O resultado para mim foi bem superior ao esperado. Leigh Janiak demonstrou domínio de um terror com características muito diferentes dos que ela já tinha trabalhado e conseguiu finalizar sua história muito bem.

Caso você não saiba o que é esse tal film trilogy event, nem o que diabos é Rua do Medo, eu recomendo que assista aos dois filmes anteriores Rua do Medo: 1994 – Parte 1 (Fear Street Part 1 – 1994, 2021) e Rua do Medo: 1978 – Parte 2 (Fear Street Part 2 – 1978, 2021) na Netflix e claro, leia meus textos sobre os filmes aqui e aqui.

Nesta parte final da trilogia a narrativa muda novamente, dessa vez com Deena (Kiana Madeira) sendo colocada dentro da pele de Sarah Fier (Elizabeth Scopel) para reviver os eventos que deram início a maldição e a lenda da bruxa. Uma ideia que se torna ainda mais inteligente quando percebemos que as personagens são interpretadas pelo elenco dos filmes anteriores, então além de estabelecer uma relação familiar entre algumas, facilita para sentirmos empatia e reforçar a ideia de ciclo já estabelecida em 1978, quando vemos, por exemplo, Ziggy (Sadie Sink) e Cindy (Emily Rudd), agora Constance e Abigail, novamente irmãs. Dentro da história isso faz sentido para Deena e consequentemente para nós que novamente somos como Deena e Josh (Benjamin Flores Jr.) – porém dessa vez sem Josh – ouvindo essa história e descobrindo como e porque deveríamos nos conectar com ela.

Agora estamos no pequeno e novo vilarejo de Union (União) no ano de 1666, já mencionado anteriormente como o ano em que Sarah Fier jogou sua maldição sobre aquele lugar, mas a homenagem dessa vez não é mais para os slashers e sim para filmes de terror folk, ou terror folclórico que tem voltado com certa força nos últimos anos e para quem não conhece muito, são filmes que investem muito mais em um terror atmosférico, muitas vezes ambientados em séculos passados em vilas rurais cercadas por bosques, tratando muito de ocultismo e histórias envolvendo bruxas.

O folk geralmente conta com personagens imigrantes da Inglaterra que estão desbravando o novo mundo trazendo suas crenças católicas. Outros elementos presentes são a forte influência da natureza, em diversos sentidos, tanto como uma força maior que não pode ser combatida, um poder ancestral que as personagens desconhecem e que frente a elas são insignificantes, algo que esteve ali muito antes de chegarem e estará muito depois, assim como algo que trás nossos instintos primitivos desde os sexuais até os mais violentos, sempre retratando ideias de sacrifícios e mortes para apaziguar espíritos, deuses ou maldições, sem ignorar é claro o paganismo, já que outro clichê desse tipo de obra é termos uma personagem ou um pequeno grupo que não compartilha da mesma fé da maioria, geralmente algo mais ligado ao sobrenatural, como o melhor conhecemos, falando de entidades antigas e/ou malignas.

Outros traços marcantes seriam a estética, que sempre passa algum tipo de estranhamento ou desconforto no espectador, e o isolamento, tanto da sociedade localizada em um lugar ermo e até então desabitado – até onde se sabia – afastada da maior parte da civilização o que contribui para que instintos primitivos venham a tona, sem ninguém para julgar a pequena comunidade, que se afasta das convenções sociais e vem trazer críticas ao fanatismo religioso especialmente, que vai ter mais relações com os horrores retratados, sociais ou físicos, do que as figuras relacionadas a um suposto demônio.

Alguns exemplos do subgênero são O Homem de Palha (The Wicker Man, 1973), O Caçador de Bruxas (Witchfinder General, 1968), O Estigma de Satanás (The Blood on Satan’s Claw, 1971), As Bodas de Satã (The Devil Rides Out, 1968), A Vila (The Village, 2004) e até mesmo alguns mais recentes como A Bruxa (The Witch, 2015), Maria e João: O Conto das Bruxas (Gretel & Hansel, 2020), Hereditário (Hereditary, 2018) e Midsommar: O Mal Não Espera a Noite (Midsommar, 2019).

Porém sem esquecer-se da história que estamos querendo assistir, o filme abre mão de explorar o folk em seu máximo para não se perder e poder concluir o projeto. O que pessoalmente não considero algo ruim, toda a trilogia é uma história intimista, sobre pessoas, suas escolhas e ações, é por causa destas personagens que ficamos essas três semanas empolgades.

Mais uma vez, o filme é dirigido por Leigh Janiak, diretora de Honeymoon (2014) e de um episódio de Pânico: A Série (Scream: The TV Series, 2015 – 2019), e roteirizado por ela acompanhada de Kate Trefry que escreveu alguns episódios de Stranger Things (2016 – ) e Phil Graziadei, que trabalhou com Janiak em Honeymoon. 

A fotografia ficou com Caleb Heymann, que já trabalhou em episódios de Stranger Things e a música com Marco Beltrami, Anna Drubich e Marcus Trumpp os três já tendo trabalhado em produções como Um Lugar Silencioso (A Quiet Place, 2018) ou Histórias Assustadoras para Contar no Escuro (Scary Stories to Tell in the Dark, 2019).

Direção, fotografia e trilha sonora trabalham bem juntas para criar a atmosfera de época, ao mesmo tempo em que provocam estranhamento ao explorar aquele lugar e aquelas personagens e como aquela junção parece, de algum modo, errada a primeira vista, já que aqueles rostos são nossos conhecidos de anos depois. 

O elenco se sai muito bem e aqui mostra sua versatilidade ao interpretar personagens diferentes em um contexto completamente diferente, com destaque para Kiana Madeira e Ashley Zukerman que protagonizam algumas das cenas mais intensas do longa. A dublagem trás as vozes dos dois filmes anteriores que se saem muito bem, mais uma vez sobre a direção de Eleonora Prado.

Com uma narrativa ambiciosa que bebe muito de A Bruxa e uma atmosfera que prende a atenção do espectador, agora em 1666 poderemos afinal ver a gênese do conflito de toda a história, além de perceber como ela ganharia muito se fosse um seriado, como pode vir a ser um dia. O filme só funciona dentro da trilogia, mesmo que possa ser assistido isoladamente e entreter, tem muito mais impacto sendo assistido depois dos dois primeiros.

Descobrimos que Sarah Fier era uma adolescente com uma vida cheia de trabalhos braçais, mas que com o resto dos jovens do vilarejo tem alguns momentos de escape, afinal jovens são jovens em qualquer época, onde descobre sentimentos e inicia um romance com a filha do pastor, Hannah (Olivia Scott Welch), que junto com sua já existente reputação de estranha acabam sendo os estopins para os acontecimentos que se desenrolarão.

As sequências de horror são muito boas, algumas causando mais repulsa e dúvida, enquanto outras provocam medo, com uma violência que mesmo no filme anterior não tinha sido tão chocante. Ao contrário do que eu esperava, a história teve um foco maior no romance do que na relação dos irmãos como nos anteriores, mas foi algo necessário para a crítica social que o filme faz ganhar força, ao passo que Sarah e Hannah começam a ser acusadas por tudo de ruim que está acontecendo sem nenhuma prova e como isso desperta instintos violentos nos cidadãos do vilarejo e os faz criarem histórias falsas, mas que para aquele momento, para parar com o sofrimento da cidade, parecem fazer algum sentido, onde a suspeita de ser uma bruxa é um crime maior do que de fato ser uma.

O mais assustador na perseguição é como tudo que é retratado ainda é muito real nos dias de hoje. A intolerância e o preconceito acabam sendo horrores muito maiores e que perduram com muito mais fôlego e que em um contexto de história de bruxaria hoje em dia é importante falar sobre como muitas mulheres foram perseguidas e mortas, sem terem sido figuras maléficas que invocavam o diabo.

As revelações além de satisfatórias fazem todo o sentido dentro de tudo que vinha sendo construído, de um jeito que me senti mal por não ter sacado tudo logo no primeiro filme. A maldição se mostra muito mais cruel e complexa do que esperávamos, mas motivada por razões tão egoístas como já era esperado. Quando finalmente o momento da morte de Sarah Fier chega, nada está sem resposta e absolutamente tudo que poderia ser perguntado foi respondido.

Qual foi então minha surpresa ao ver que os últimos quarenta minutos de filme seriam um 1994 parte 2. Com duas estéticas completamente diferentes, é quase impossível não estranhar quando voltamos para os filmes de slasher sangrentos, mas já que na primeira parte tudo foi explicado e esclarecido, era hora de resolver a situação e acabar com essa maldição de uma vez por todas. E é impressionante como tudo ainda funciona em 1994, mesmo que estejamos de volta ao humor “por favor não sejam burros”, temos momentos mais do que épicos como uma rinha de serial killers, que era tudo que eu mais precisava e não sabia.

Assim como a parte 1 de 1994 era super expositiva, esta segunda parte acaba sendo muito explicativa, o filme acaba se tornando muito mastigado, o que pode incomodar quem tem mais hábito de assistir filmes com frequência, em especial os de terror, mas é preciso lembrar que a trilogia atingiu muitas pessoas que não entendem muito desse tipo de universo e precisam ser apresentadas ao seu funcionamento. E mesmo assim, sempre temos quem não entende de primeira, não à toa, com certeza já deve haver algumas dezenas de vídeos na internet explicando a história da trilogia para auxiliar essas pessoas.

Dá gosto ver ao final todos os ciclos bem construídos envolvendo nossas personagens femininas se completando e se mostrando, como o romance, ou Ziggy que perdeu sua irmã Cindy, enquanto sua antepassada Abigail perdeu a irmã Constance, mas melhor ainda é ver esse ciclo ser finalmente quebrado e agora Sarah, Ziggy e Deena podem ficar em paz. E eu também, sem precisar me preocupar mais com elas.

Rua do Medo: 1666 – Parte 3 (Fear Street Parte 3: 1666, 2021) entrega uma proposta totalmente diferente de seus anteriores, ao mesmo tempo em que fecha bem toda a história de Shadyside e nosses protagonistas, completando todas as lacunas que faltavam para entendermos o todo e finalizando a jornada que vimos se iniciar no primeiro filme.

Para além disso, temos o fim de uma grande homenagem feita com carinho para os filmes e obras de terror que nos marcam até hoje e sem dúvida marcaram tanto R.L. Stine, ao escrever os livros que inspiraram essa trilogia, quanto Janiak ao adaptá-la, mostrando suas possibilidades e contrastes, priorizando a diversão, mas sem esquecer de fazer críticas a nossa sociedade como é comum do terror.

O resultado é inegavelmente positivo, a palavra “lésbicas” ficou entre os assuntos mais comentados do Twitter durante todo o final de semana de estreia do filme, e Janiak já demonstrou interesse em construir o que ela chamou de um MCU de terror, onde ela já teria em mente a história de assassinos slasher em outras épocas, incluindo uma que se passa nos anos 50.

A trilogia se mostrou bem consistente e funcional, entregando uma história interessante, situações divertidas e um sentimento bom tanto para fãs veteranes quanto novates de terror/horror. Tudo poderia de fato ser melhor explorado em uma série, mas o sentimento final – para mim pelo menos – é de satisfação.

Leigh Janiak conte comigo para assistir esse MCU de terror que você quer fazer.


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