Quase dois anos após a sua segunda temporada, a série criada por Ryan Murphy, Steven Canals e Brad Falchuk retorna para sua terceira e última temporada. Mesmo a série tendo tido as performances de suas atrizes trans negras e afro-latinas ignoradas durante o último Grammy, é impossível apagar a relevância e o marco deixado por elas e também pela importância de tê-las em cena.
Desde seu primeiro ano, Pose (2018 – 2021) se consagrou como uma série capaz de trazer a maior quantidade de pessoas trans envolvidas (por trás e em frente às câmeras) e por trazer histórias sobre homens negros gays contadas de uma forma não previamente feita. O ator Billy Porter ganhou um Emmy por sua interpretação como Pray Tell na série, o personagem teve uma jornada sobre lidar com o fato de ser soropositivo e na segunda temporada da série protagonizou uma cena de sexo gay. Porter mesmo falou sobre como ele não havia assistindo uma cena de sexo gay entre dois homens negros, onde um deles é mais velho, antes na televisão.
Os arcos sobre as lutas realizadas pela comunidade no passado, para conquistar direitos a tratamentos e prevenção contra HVI, continuam por essa temporada. A série continua a cuidar de valorizar a história de como as comunidades negra e latina foram demasiadamente importantes para os avanços sociais sobre tratamentos para HVI. Muitos corpos acumularam, muitos morreram, muitos entes queridos foram mortos para chegarmos aonde estamos hoje e a série não se nega a essa realidade. Em Junho se comemora o mês do Orgulho LGBTQIA+ e é simbólico ter sido nesse mês o final de uma série tão importante para contar a histórias dessas pessoas.
Nossos personagens não são obrigatoriamente baseados em personagens reais, mas eles trazem consigo muito de histórias de pessoas reais ainda muito negadas um espaços na televisão. Quando premiações como Emmy e o Globo de Ouro negam dar o merecido valor a performances de atrizes trans como Angélica Ross e MJ Rodriguez por suas interpretações como, respectivamente, Candy Ferocity e Blanca Evangelista na segunda temporada da série, é uma forma de falar que essas mulheres não brancas e trans não são dignas aos olhos de tais premiações de terem seu talento valorizado. Premiações estas as mesmas responsáveis por indicar homens cis por seus papéis de mulheres trans ou mulheres cis interpretando homens trans.
Na sua última temporada a série começa se passando em 1994 e nossa protagonista, Blanca Evangelista, agora está trabalhando como enfermeira e vivendo um relacionamento novo e feliz. Para não me aprofundar nas partes de spoilers, é importante falar brevemente sobre os diferentes tópicos desta temporada, que faz com que os episódios pareçam menos codependentes uns dos outros e mais como histórias pontuais, com início, meio e fim. Em sua premiere, temos o retorno de nossos protagonistas para os bailes com a chegada de uma nova família que desafia seus legados.
Como um tópico tocado depois na temporada, é importante mostrar como estas pessoas foram capazes de viver no “mundo real” e deixaram a ideia de bailes para trás, de uma certa forma. Afinal, os bailes eram locais onde essas pessoas não gênero conformistas, em sua maioria negras e latinas, ocupavam espaços negados a si no mundo real. Para isso tivemos na segunda temporada uma maior transição para os personagens serem capazes de estabelecerem suas vidas e realizarem o que antes eram apenas sonhos.
Todas as temporadas da série tiveram um tema recorrente sobre bailes e as vivências destes corpos nestes espaços, mas sua terceira temporada talvez seja a com menos presença de bailes exatamente por estarem lidando com a vida real dos personagens.
Um dos melhores feitos desta série foi a capacidade de não introduzir uma tona de novos personagens a cada temporada e mesmo assim ser capaz de desenvolver novos enredos com os que já tinha em mãos. Um feito muito difícil a ser atingido por outros seriados é ser capaz de explorar diferentes facetas, desejos e problemas de seus personagens. Muitas vezes vemos o roteiro forçando os personagens a jogar seu desenvolvimento fora e aqui isso não acontece. Em três temporadas os nossos personagens são mostrados passando por diferentes momentos e situações de suas vidas, aprendendo com elas de suas próprias formas.
Dominique Jackson entrega, pelo terceiro ano consecutivo, uma incrível performance como Elektra Abundance e dessa vez a ela é dada maior chance de explorar diferentes facetas da personagem. No primeiro ano da série, Elektra parecia uma figura antagônica para a história da Casa Evangelista, mas ao passar dos episódios e anos pudemos compreender mais da rigidez de sua personagem. Elektra se torna um marco como uma mulher que recusou baixar a cabeça e se desculpar por ser ela, ela lutou com unhas e dentes para crescer cada vez mais e é de grande prazer ver o caminho percorrido e o resultado atingido pela mesma.
Sob um mundo ainda hoje refém da cisgeneridade e da branquitude, nossas personagens concluem suas trajetórias na televisão como magníficas mulheres trans não brancas se recusando a imitar qualquer tipo de “mulheres brancas da HBO“. Que Pose possa se concluir não como um fim, mas como uma nova porta se abrindo, para que mais histórias sejam contadas por pessoas LGBTQIA+ não brancas, como Steven Canals – diretor do último episódio e um dos criadores da séries – e Janet Mock – diretora da série e a primeira mulher trans negra a dirigir um episódio de um seriado de televisão.
Mesmo enquanto seja praticamente impossível manter um seriado focado em pessoas não brancas, parte da comunidade LGBTQIA+, apenas com finais felizes, a série abre tantas possibilidades para o significado de felicidade. É importante observar o fato de que, por muito tempo, a personagens como nossos protagonistas eram negados amores, sucesso, até mesmo a vida e à saúde. Pose está aqui para quebrar uma ideia de representação para pessoas não brancas e nem héteros e/ou trans só podem sofrer em nossas telas. Existem muito mais possibilidades a serem exploradas destes personagens e também muito além de sofrimento para eles.
Peguem seus lenços e se preparem para uma das mais emocionantes, respeitosas e cuidadosas histórias contadas sobre esses corpos, essas pessoas. Pose nos ensina, ao longo de sua história, o valor de uma família de verdade, não àquela apenas pautada em laços sanguíneos. Família é amor para além do sangue e o amor não joga alguém fora apenas por ser quem nasceu para ser.
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Cineasta graduade em Cinema e Audiovisual, produtore do coletivo artístico independente Vesic Pis.
Não-binarie, fã de super heróis, de artistas trans, não-bináries e de ver essas pessoas conquistando cada vez mais o espaço. Pisciano com a meta de fazer alguma diferença no mundo.