Professor Polvo – A história de uma amizade improvável

Uma das várias lembranças que tenho da infância de um joguinho de tabuleiro com curiosidades sobre animais, entre morcego ser o único mamífero voador, a lula ter o maior olho do reino animal e o ornitorrinco ser o único mamífero que põe ovos é a de que os polvos tem três corações e nove (!) cérebros. Não são exatamente cérebros, mas terminações nervosas em cada um dos oito tentáculos que funcionam independentemente do cérebro principal e conseguem sentir e tomar praticamente decisões próprias. Isso sempre, desde meus 9 ou 10 anos, me intrigou muito, muito mesmo. Outra coisa que carrego desde a infância é um medo absurdo do fundo do mar. Não é nem algo muito explicável, já que eu nem mesmo já experimentei na pele, nunca mergulhei, mas tremo só de imaginar aquela imensidão sem fim, cheia de animais estranhos, alguns até mesmo que ainda são desconhecidos por nós, de todos os tamanhos inimagináveis, foças escuras e cavernas labirínticas, além, é claro, do terror que me causa a possibilidade de um afogamento. Mas ao mesmo tempo nutro, desde sempre, um fascínio imenso por aquele universo desconhecido, uma curiosidade tamanha que às vezes me flagro pensando em vencer esse medo um dia e conhecê-lo um pouco mais de perto.

Mas enquanto não tenho essa coragem e essa oportunidade, tenho gostado muito de ver documentários e programas sobre o reino animal e a natureza como um todo (incentivado pelo gosto recém adquirido por meu filho pequeno), e especialmente sobre a imensidão da vida submarina. Desta forma, antes mesmo da indicação ao Oscar na categoria de melhor documentário este ano, já estava nos meus planos assistir a Professor Polvo (My Octopus Teacher, 2020), lançado na Netflix em setembro do ano passado. Quando li sua sinopse no serviço de streaming esperava que fosse mais um desses “documentários” quase infantis, que criam uma narrativa meio aventuresca com os animais, ao estilo da série Natureza Discreta (Tiny Creatures, 2020 -), também lançado pelo mesmo canal, mas qual foi a minha surpresa ao se deparar com uma história de amizade incrivelmente sensível e reveladora.

Desde o início somos apresentados ao cineasta Craig Foster, documentarista sul-africano que conta como passou quase toda sua infância vivendo no litoral do extremo sul do continente, um lugar de águas revoltas e perigosas, temidas pelos navegadores desde o tempo das grandes navegações no século XIV. Aos poucos vamos entendendo que Craig estava passando por um momento difícil em sua vida, desacreditado da profissão que escolheu, completamente desconectado da natureza que tanto fez parte da sua infância e de seu trabalho, sem um propósito claro. Foi quando decidiu voltar a mergulhar, uma imersão literal e profunda na natureza, na sua infância. Uma virada radical e urgente, e que mudou sua vida para sempre. Foi naquele mar gelado, naquela enorme floresta de algas e animais estranhos e perigosos, entre tubarões-tigre e crustáceos de todos os tipos que Craig a conheceu.

O contato inicial não foi fácil e rápido, já que o polvo é um animal extremamente arredio. Mas podemos comparar (simplificando ao máximo) com os primeiros contatos que temos com cães ou especialmente gatos de rua, acostumados a estarem sempre ameaçados de várias formas, desconfiados de tudo e de todos. Não à toa é um animal que possui inúmeras estratégias de defesa, desenvolvidas por sua espécie através de milhares de anos, como a capacidade de se camuflar como um camaleão, de utilizar seus tentáculos para ficar exatamente como uma rocha ou coral, os movimentos e raciocínio incrivelmente rápidos e o famoso jato de tinta para confundir os predadores em perseguições. Mas Craig percebeu que havia uma rotina na vida daquela criatura e que ele poderia voltar todos os dias e encontrá-la sempre no mesmo esconderijo. E foi o que ele fez. Assim, Craig foi criando um vínculo com o animal, uma ligação que nasceu primordialmente de uma curiosidade mútua, mas que avançou vários passos até se tornar algo de uma afetividade inesperada.

Os polvos são animais selvagens, no sentido em que, diferente dos cães, gatos e hamsters, que foram forjados por anos para a companhia humana, os polvos dificilmente chegam ao menos a ter contato com alguma pessoa durante seu tempo de vida. Mas o que nem eu, nem Craig Foster esperávamos era que estávamos diante de um ser tão inteligente e sensível quanto o mais esperto dos cãezinhos. O cineasta passa então a visitá-la sempre, observá-la, aprender seu comportamento. E é interessante pensar que ele também se preocupou com algo que eu comecei a temer em certo momento do filme: o quanto sua presença iria interferir na rotina e na vida daquele animal e de todo aquele ambiente. Craig decide por tentar ser o mais sutil possível, mas era impossível não continuar com aquilo e, por mais que houvesse uma interferência inevitável, para mim já estava claro que, de uma forma muito estranha e quase inacreditável, a criatura parecia estar nutrindo um afeto por aquele ser humano. A cena em que o primeiro contato físico acontece é tão emocionante, narrado pelo próprio Craig, que parece que estamos vendo uma fantasia e não um documentário.

E é exatamente isto que faz toda a diferença. Por mais que saibamos que drones e outros aparatos foram usados nas gravações, além da edição sublime, é difícil não acreditarmos naquela amizade, acreditar que existiu ali uma relação real entre dois animais tão estranhos um ao outro. A preocupação de Craig ao narrar os momentos de tensão que sua amiga passou, as várias descobertas a cada visita, a inexorável despedida, tudo aquilo me foi passado de uma forma que consegui sentir um pouco do que aquele homem estava me narrando. O aprendizado do contato com aquela natureza o transformou, o fez realmente se sentir parte dela, e não algo acima ou superior, que é como nós humanos geralmente nos sentimos, mas realmente mais um pequeno pedaço desse grande organismo. Posso dizer que após assistir a Professor Polvo consigo entender por que esse animal tem tantos corações.


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