Uma noite de estreia para um cineasta no início da carreira. Um motivo de comemoração. Uma música dançante, bebida e macarrão com queijo, preparado pela namorada. Madrugada. De repente, ela começa uma discussão. Algo relacionado ao evento em que estavam, ao filme, à equipe do filme, ao elenco, não sabemos. Marie (Zendaya) vai falando e vamos construindo a cena em nossa cabeça. Cada acontecimento da noite que a incomodou. E estamos com ela até que Malcolm (John David Washington) se posiciona. E ficamos atentos. Ficamos divididos entre os dois. Cada palavra importa. Cada olhar ou desviar de olhar, cada pequeno sorriso ou respiração mais funda. É nos pequenos gestos que está o convencimento para nós espectadores, de que aquilo é real.
O filme – Malcom & Marie (2021) escrito e dirigido por Sam Levinson (criador da série Euphoria, 2019) todo é uma grande discussão entre o casal. E não é uma discussão chata. Não no sentido de ser vazia, pelo menos. Toda a discussão ou os momentos de discussão, iniciados por Marie, na maioria das vezes, têm questionamentos que fazem muito sentido para a estória contada, para os fatos pregressos mencionados pelos dois. E, embora Marie pareça instável emocionalmente, o que é justificado pelo fato de que ela sofre de depressão e teve (ou tem) problemas com drogas, ela é muito bem articulada e utiliza argumentos bem elaborados. Malcolm rebate e às vezes se cansa. Tenta deslegitimar sua fala, chega a ser ofensivo. Uma troca de acusações e de agressões verbais. Em poucas horas de uma mesma noite, eles têm momentos subsequentes de um debate que cresce a cada novo ponto mencionado, por ambos. Sabe aquilo de “Você está desenterrando esse assunto por quê?”? Nessa longa noite aparentemente todos os antigos assuntos foram desenterrados por eles. Um constante resgate de antigas mágoas.
E como todo casal que está em uma “DR”, Malcolm e Marie também têm momentos de respiro. As trocas de carícias e tentativas (mais de Malcolm) de transar; o grande discurso de Marie fingindo ser o “homem branco” falando sobre o filme de Malcolm e o monólogo de Malcolm irritado reclamando da crítica publicada por uma mulher branca sobre o filme. Malcolm deixa claro que não quer ter seu filme associado a um debate “político”. Ele justifica o fato de que seu filme pode ser sobre pessoas negras, escrito e dirigido por um homem negro e não necessariamente ser um filme político. Diz que é apenas um filme e critica a forma como a “crítica branca” quer encaixá-lo. A posição de Malcolm é rebatida por Marie, que argumenta: “Angela Davis discordaria de você”. Com isso quero dizer, esse filme traz a discussão de um casal como pano de fundo para uma discussão atual, recorrente e importante sobre questões raciais. O que Malcolm defende é mais ou menos como: Para falar sobre racismo, você deve chamar uma pessoa negra. Mas você não deve chamar uma pessoa negra apenas para falar sobre racismo.
Falando sobre questões estéticas, Malcolm & Marie é um filme em preto e branco que se utiliza (muito bem por sinal) de movimentos de câmera. Tudo se passa em uma casa grande e moderna, com portas e janelas de vidro, sendo possível explorar a movimentação dos atores dentro da casa com câmeras posicionadas na área externa. Por se passar no período noturno, luz e sombra também são recursos explorados na obra. É possível perceber também que a locação fica em uma área rodeada por um espaço verde e não há outras casas próximas aparentemente. Tudo isso contribui para ideia de que esses dois personagens estão sozinhos e têm apenas um ao outro nesse ambiente e neste momento. Toda a construção estética foi pensada para que o foco do espectador seja exclusivamente os diálogos e as ações que os complementam. Tanto que, o ambiente é bastante silencioso, a não ser pelas vezes em que um deles coloca uma música para tocar e ainda assim, a música é um elemento narrativo, chegando a ser também motivo para iniciar uma discussão.
J. D. Washington e Zendaya, fazem um casal inteligente, ele cineasta, ela atriz, bonito (que deve chamar atenção dos olhares alheios) e que na privacidade de suas vidas, conversam sobre assuntos sérios ou imitam outras pessoas e se divertem, que dançam, cozinham, transam e dormem juntos. Um casal como qualquer outro. Que acaba dizendo e fazendo coisas ao outro de que se arrepende. Mas espera, dá um tempo, dorme e torce para estar tudo bem no dia seguinte. Porque apesar de tudo, sentem que amam um ao outro. Malcolm & Marie não é um filme romântico. É um drama intimista que consegue explorar as características da relação de um casal abordando temas pertinentes e atuais. Então se você gosta de discussões profundas e bem argumentadas, além de visualmente bem compostas, te convido a ver este filme.
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Bacharela em Cinema e audiovisual, adora maratonar séries e salvar vários filmes na lista da Netflix. Ama filmes clássicos e estórias com reflexões profundas. Às vezes escreve sobre audiovisual!