Cidade Invisível – A valorização do Panteão Nacional

Cidade Invisível (2021), a série nacional que estreou na Netflix dia 5 de fevereiro , já é a mais vista no Brasil e está entre o top 10 em mais de quarenta países, segundo dados da própria plataforma de streaming. Criada por Carlos Saldanha, diretor de  A Era do Gelo (Ice Age, 2002), Rio (2011), Rio 2 (2014) e O Touro Ferdinando (Ferdinand, 2017), o enredo é baseado na história desenvolvida pelos roteiristas e autores de best-sellers Raphael Draccon e Carolina Munhóz. A trama foca em estabelecer uma conexão entre a morte da esposa de um detetive, e o folclore nacional. 

Passado os dados técnicos sobre essa obra, torna-se inevitável o frisson que sentimos ao falar, recomendar ou sentir orgulho dessa produção nacional. Mas, evitando maiores emoções para fazer uma resenha, consigo agora, com mais clareza, identificar o que nos torna empáticos e tocados por essa série. A premissa gira em torno de Eric (Marco Pigossi), um detetive de polícia ambiental que investiga a morte de sua mulher, Gabriela (Julia Konrad), e durante sua investigação descobre que as circunstâncias da morte de sua esposa levam ao envolvimento com figuras fantásticas de nossas lendas. 

A primeira temporada conta com sete episódios, com cerca de trinta e cinco a quarenta minutos cada, onde vemos a formação da “jornada do heroi” de Eric, sendo permeada de forma crescente por entidades que muitos de nós já temos internalizados por histórias e lendas contadas por nossos antepassados.  Quando cito aqui a jornada de Eric, quero ressaltar algo que me alegra bastante como característica do personagem: o fato dele não ser um protagonista cético, coisa que sempre nos cansa e atrapalha o decorrer da narração por alguns episódios, ele se deixa envolver, se deixa encantar, pois sabe que a esse é o único jeito de ir além nas suas questões.

Os nomes das criaturas magicas apresentadas, podem variar de região para região do Brasil, mas sabemos, mais do que isso, nos sentimos familiarizados com os seres míticos que preenchem essa historia. Enfim, agregado a esse sentimento de ativação de memória que é instintivo, vem uma releitura narrativa para suas origens, que abraça assim um publico mais jovem que pode nunca ter ouvido uma das lendas.  Os efeitos visuais merecem ser enaltecidos, encantam realmente, sem deixar nada a dever a produções hollywoodianas.

Destaco aqui as interpretações de Alessandra Negrini, como a Cuca, a feiticeira da mata. E aqui, faço uma adendo que julgo ser muito útil, a ‘Cuca’ não nasce com os livros de Monteiro Lobato, naquela versão de bruxa- jacaré que é sempre enganada pela boneca de pano Emília. Aliás, segundo Câmara Cascudo, um dos maiores historiadores e folcloristas do Brasil, a Cuca é descrita como um “papão que tem o poder de atravessar os sonhos e que pode se transformar em Borboleta, Mariposa ou Coruja.” Ou seja, a pesquisa para a construção da narrativa dessa personagem está impecável com a sua raiz original. 

Outro destaque de atuação vai para Camila Cores, que interpreta a Iara, uma lenda indígena que também transita por diversas culturas, como por exemplo as sereias da Escandinávia, as ‘Ningyo’ as sereias japonesas e nas crenças de matrizes africanas, com sua Orixá maior Iemanjá. E a escolha de Camila, com seus traços negros e tranças, não foi por acaso, visto que parte de nossa cultura é miscigenada e diversa.  O núcleo de Victor Sparapane (Manaús , O Boto)  e Fábio Lago (O Curupira), trazem o vigor dos contos da região norte do Brasil. Sem que se reforce estereótipos narrativos, sentimos que são contos de origem cabloca e indígena que estão sendo expostos ali. Pessoalmente, como uma mulher nascida na região norte, mas precisamente em Belém do Pará, fiquei extremamente feliz de ver, pela primeira vez em uma representação audiovisual, uma lenda que ouvia de minha avó na infância, “o homem que vira porco”. Parecia que a voz dela (minha avó) estava ganhando vida e força, e suas palavras iriam muito além daquela sala iluminada por uma vela, onde escutei pela primeira vez sobre o que representa o personagem Tutu Marambá, interpretado por Jimmy London. E é isso que revigora a grandeza desse trabalho, pois nenhum outro país poderia produzir essa obra, aqui temos um Brasil que fala de si. Fala de seus mitos e lendas, para lembrar-nos que também temos nosso aspecto fantástico e que, muitas vezes, trocamos por culturas nórdicas, célticas e etc.

Mas também não esconde nossas sujeiras, como o suborno, a corrupção e o “Isso não é comigo’. Após terminar a temporada, cismei de querer entender o titulo “Cidade Invisível” e instantaneamente eu pensei, estamos realmente deixando invisível parte de nós, parte de nossas raízes, afinal, quem ainda conta lendas as novas gerações? Nossas historias viviam na oralidade das bocas dos antepassados e eles estão partindo, dando lugar a tablets, celulares, onde consumimos a cultura alheia, os mitos alheios, as lendas alheias. Sabemos quem é o Thor, o deus do trovão dos escandinavos, com tanta propriedade como sabemos quem é Tupã (Deus Trovão na língua tupi)?  

Espero que venha uma segunda temporada o mais breve possível, não só para responder questões que ficaram pressentes, mas também pela necessidade de abrirmos cada vez mais nossos baús de tesouro repletos com o panteão de mitos brasileiros. Afinal, se os mitos e lendas dependem da oralidade, e por sua vez, a oralidade depende de nós para existir, fico feliz que uma produção com esse porte tenha abraçado essa função.

As linhas que seguem a partir daqui, contém spoilers e se já assistiu a série fica o convite para continuar com nossas especulações e pontos de vista.

  1. Algumas dúvidas ao final da temporada ficaram rondando minha cabeça e acabei por associar com diversas produções que já consumi, como por exemplo a série da Amazon Prime Video, American Gods (2017 -), que nos indica que ao passo que os deuses não tem mais suas crenças para lhes ampararem, eles acabam por se adaptar a uma nova condição para sobreviver na realidade humana. Assim como o Curupira, o defensor da natureza , que para continuar ‘vivo’ na cidade fica similar ao que aconteceu com a natureza, está coberto por sacos plásticos e lixo, quase imóvel no asfalto e necessitando ser amparado. A cadeira de rodas para um ser que corre com os pés virados pra trás, seria um símbolo semiótico de como a natureza não consegue avançar na cidade? Assim como o Saci , interpretado por Wesley Guimarães. Um ser que na fantasia se move com um redemoinho e na cidade precisa de uma prótese;
  2. Uma curiosidade engraçada; O nome assumido na cidade pelo personagem  Saci (Wesley Guimarães), é Isac – Um anagrama de SACI;
  3.  Será que uma entidade realmente pode morrer completamente e não pode ser revivida de alguma forma, com algum ritual ou reavivando as crenças e lendas? Afinal, são seres mágicos. Ou será que essa saída serve para dar espaço para novos seres?;
  4. Falando em novos seres, assim como na mitologia grega, existem os mestiços (filhos de deuses com mortais). Vimos que Eric era um mestiço, filho do boto. E ainda tem o filho no ventre da personagem Fabiana (Tainá Medina), será mais um filho de Manaús (Victor Sparapane), Assim como Luna, a filha de Eric, também pode ser uma mistura, pela origem de seu pai.  O que acham?
  5. Todos os seres mágicos ao morrerem ficavam com os olhos brancos, seria a esposa de Eric algum tipo de ser mágico também? Afinal, ela foi encontrada com essa mesma peculiaridade nos olhos. E ainda reaparece ao final, num plano etéreo falando com Eric.

Deixem seus comentários com suas teorias e vamos juntos aguardar a segunda temporada. Será um prazer dividir essas respostas e confabular com vocês. 


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