A Voz Suprema do Blues – Músicos antagonistas, diálogos antirracistas

A Voz Suprema do Blues (Ma Rainey’s Black Bottom, 2020) dirigido por George C. Wolfe e escrito por Ruben Santiago-Hudson é um filme com roteiro adaptado a partir da peça de mesmo nome escrita por August Wilson em 1984. A narrativa se passa na cidade de Chicago no ano de 1927 e tem como mote a gravação do primeiro disco de Ma Rainey, artista consagrada pela incrível interpretação das canções de blues e por isso conhecida como “A mãe do Blues”.

Ma (Viola Davis) por si só traz uma grande história. É uma mulher negra, bissexual, de voz potente e corpo “fora do padrão”. A primeira mulher a ganhar espaço na cena do blues, até então majoritariamente composta por homens. E, além disso, uma mulher que “não levava desaforo pra casa”. Ciente do racismo e do machismo que sofria, Ma não baixava a cabeça para os homens brancos da indústria da música. “Eles não ligam pra mim. Só querem a minha voz.”, menciona ela no filme.

No filme, enquanto Ma não chega à gravadora, somos apresentados aos músicos da banda e acompanhamos sua tentativa de ensaiar as músicas do disco. Tentativas porque Leeve (Chadwick Boseman), o trompetista e músico mais jovem da banda, não se conforma em seguir ordens e quer fazer sua própria versão de uma das canções. A maior parte da narrativa se passa no estúdio. Leeve conduz a discussão sempre trazendo temas complexos, questionando os argumentos apresentados pelos demais músicos e não cedendo nem um pouco. 

Leeve tem uma força expressiva muito presente na tela. Somos conduzidos por suas palavras e por seus gestos, seu olhar. Um olhar que traz em si a dor de uma experiência traumática vivida na infância e narrada por ele em determinado momento do filme. Mas Leeve tem uma personalidade instável. E, ao mesmo tempo em que sentimos que há certa ingenuidade em sua forma de agir, como quando ele acredita que o dono da gravadora investirá em sua carreira, por exemplo, constatamos também suas falhas de caráter, quando, por exemplo, ele seduz Dussie Mae (Taylour Paige), então namorada de Ma Rainey. Leeve é inconsequente e conforme a raiva cresce dentro de si, isso vai ficando mais claro, até que não existe mais forma de reverter.

A produção da Netflix traz uma grande contribuição ao contar uma parte da história dessa grande artista, Ma Rainey, para o público do serviço de streaming. Uma vez que muitos de nós provavelmente não conheceríamos sua história de outra forma. E como mencionado por Viola Davis “Ela não se desculpava por ser quem era”, embora divergisse da postura esperada das mulheres à época. Sendo assim uma figura importante de empoderamento para nós mulheres. Inclusive é possível conhecer um pouco mais sobre a artista no documentário da Netflix A Voz Suprema do Blues – Bastidores (2020), sobre a produção do filme, além de conhecer os bastidores da obra. Eu diria que a experiência só é completa se você vir às duas obras, uma seguida da outra, o que não leva mais que duas horas.

Outra questão que não pode deixar de ser mencionada é que a produção explicita os motivos que levam à revolta da população negra diante da sociedade racista. Fica evidente na construção dos diálogos o quanto esses personagens estão cansados de “ser compreensivos” com a “forma que as coisas estão postas”. É possível sentir e entender o porquê de tanta raiva. É uma questão de justiça social. E se você é justo, compreende que tudo o que a população negra reivindica há muito tempo é legítimo, pra dizer o mínimo. A Voz Suprema do Blues é um filme biográfico e não poderia deixar de ser também, um filme político.


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