Lovecraft Country – Uma ponte para o futuro, mantendo um pé no passado

Ficções são como pessoas. Amá-las não as torna perfeitas. Você se apega a elas e tenta ignorar os defeitos”  Atticus Freeman

Separar o autor da obra é um processo incômodo, porém necessário. Quando lemos qualquer tipo de literatura, nós entramos em contato com as ideias e as vivências de determinado autor. Isso cria uma falsa sensação de que se nós gostamos da história desse livro, nós gostamos de quem a escreveu, afinal, tudo que acabamos de consumir veio da mente daquela pessoa. Isso é muito marcante especialmente em obras de ficção, já que existe todo um universo fantástico, com diversos personagens para você se identificar e criar empatia.

H.P.Lovecraft foi um escritor do século 20 conhecido pelo seu trabalho no gênero de terror. Sua escrita tem como base o horror cósmico, um tipo de terror indescritível, profundo, incongruente, complexo e tão absurdo que não pode ser compreendido pela mente humana, tendo a loucura como único resultado para aqueles que se arriscam. Entretanto, Lovecraft era um homem branco extremamente racista e xenofóbico. Por isso, ele usou seu desprezo por culturas não brancas e pela miscigenação para construir um universo onde o medo do desconhecido está sempre presente através de criaturas espaciais de formas quiméricas.

O autor ser problemático não afeta a qualidade da obra, porém olhar para o passado sem uma perspectiva anacrônica é quase impossível, então é interessante que essas obras sejam revisitadas e ressignificadas através de um contexto social e perspectiva crítica, assim possibilitando novas leituras.

Essa análise pode ser feita explicando, nas primeiras páginas do livro, o contexto histórico e social da época em que a obra foi concebida, antes do leitor começar a ler a história, assim, não havendo necessidade de censura.

Lembrando que esse debate não é exclusivo dos outros países. No Brasil, Monteiro Lobato era um racista eugenista e suas obras possuem vários trechos problemáticos por causa disso.

Alguns autores já tentaram trazer H.P Lovecraft para o nosso tempo, sempre tentando preservar a essência do terror e desconforto daquele universo. Uma dessas empreitadas é Lovecraft Country. Um livro de 2016, escrito por Matt Ruff que ressignifica a obra de Lovecraft inserindo um contexto de crítica racial enquanto utiliza de vários artifícios e conceitos clássicos para montar a narrativa.

Lançada em 2020 pela HBO, a série Lovecraft Country (2020 -) é produzida por Jordan Peele, juntamente com J.J. Abrams e tem como showrunner Misha Green. A trama é ambientada nos anos 50 e conta a história de Atticus Freeman (Jonathan Majors), um soldado preto que após retornar da Guerra da Coreia precisa viajar para Chicago para buscar por seu pai que está desaparecido.

O programa possui uma estrutura de narrativa episódica e temática. Cada episódio busca desenvolver a complexidade de um personagem enquanto adota um gênero cinematográfico para contar aquela história, sem abandonar a intersecção entre o terror e o racismo, assim, conseguindo modernizar e adaptar o universo de Lovecraft e o livro de Matt Ruff.

Esse flerte com o estilo de narrativa procedural torna a proposta criativa de cada episódio única. Cada novo capítulo se apropria de determinado gênero que sempre foi protagonizado por brancos para inserir a perspectiva de pessoas pretas nesse tipo de história. Isso resulta em episódios incríveis de viagem no tempo e mansão mal assombrada, mas também em aventuras clichês de caça ao tesouro.

Mesmo com esse amálgama de estilos, o roteiro consegue conectar todos os episódios e tornar a história fluida. Porém, a trama principal não é o foco de Lovecraft Country, sendo assim, às resoluções e explicações para alguns conflitos são jogadas ou pouco explicadas. Para os fãs de histórias bem amarradas e complexas isso pode ser um problema, mas para os fãs de desenvolvimento de personagens e discussões raciais Lovecraft Country é genial.

A exibição semanal favoreceu esse aspecto procedural do programa. Cada semana o público não sabia o que esperar da série. Já que em um episódio você está vendo uma história de mitologia coreana e no próximo é inserido em um plot de viagem no tempo afrofuturista. Caso os 10 episódios fossem liberados de uma vez, essa experiência de discussões e descobertas semanais seria perdida em uma maratona de dois dias. Sem falar que a série iria desaparecer das redes sociais em no máximo duas semanas.

O piloto da série é uma apresentação incrível de personagens, proposta e universo. Desde o primeiro episódio o público cria uma expectativa do que será abordado nos próximos capítulos. Tudo funciona com maestria, desde a apresentação de cada um dos personagens, até o medo constante de ser preto nos Estados Unidos, já que naquela época existiam as cidades Sundown, cujo nome vem do fato de que um negro poderia ser morto simplesmente por não ter saído daquele condado antes do pôr do sol, por isso o Green Book era tão importante para os viajantes. 

Essa tensão racial, por ser a força motriz da história, precisava reunir o terror e suspense necessários para que depois dela, mesmo com uma manifestação de criaturas sobrenaturais, o público sentisse um alívio pelos personagens.

No decorrer dos episódios somos inseridos em vários contextos e propostas de discussão diferentes. Além de sempre termos os holofotes voltados para alguma figura feminina.

Existe um episódio de “mansão mal assombrada” onde o passado de corpos negros explorados, mutilados e violados por brancos compõem os fantasmas da casa. É nesse episódio em que Leti Lewis (Jurnee Smollett) assume o protagonismo permanente da série, com uma cena icônica de fúria que faz referência ao clipe Hold Up de Beyoncé e também a Jackie Robinson, o primeiro jogador preto a entrar na principal liga de beisebol dos estados unidos. Nesse episódio é abordado um dos conceitos chave do universo de Lovecraft, o horror ancestral. Lugares tem poder e esses espaços físicos acumulam memória e história, assim, se manifestando como personagens e tornando-se ideais para a prática de magia.

Ruby Baptiste (Wunmi Mosaku) também tem o seu próprio episódio. Nele o body horror e o gore são utilizados para discutir como uma mulher gorda e preta retinta reagiria se fosse dada a chance de ser uma mulher branca por um tempo. Neste capítulo privilégio branco e machismo são o foco principal da trama.

O melhor episódio da temporada, para mim, é protagonizado por Hippolyta Freeman (Aunjanue Ellis). Esse capítulo é onde o brilhantismo e a experimentação de Lovecraft Country chegam no seu ápice. Usando o plot de viagem no tempo, um desenvolvimento de personagem permeado pelo afrofuturismo é oferecido ao telespectador. Hippolyta vivencia o absurdo e a grandiosidade da viagem temporal para enfim conseguir se nomear e aceitar a potência de ser uma mulher preta em uma sociedade opressora e patriarcal que reprimia e controlava a sua verdadeira natureza.

Diana Freeman (Jada Harris), filha de Hypolita, também assume o protagonismo de um episódio em dado momento. Por ser a personagem mais jovem do grupo, sua perspectiva amplia a nossa percepção da realidade dos anos 50. Dee é uma adolescente que cresceu com a Lei de Jim Crow em vigor e precisou lidar com a morte de um amigo para o racismo. São nesses momentos em que o papel social da série vem à tona. Misha Green poderia ter trabalhado o luto da menina nessa sociedade violenta através de um personagem fictício. Entretanto, a showrunner utilizou do caso real de Emmett Till, um jovem de 14 anos que foi brutalmente assassinado por supostamente ter “dado em cima” de uma mulher branca na rua.

Uma surpresa foi um episódio completo focado em mitologia coreana no meio da temporada. Nele nós acompanhamos o período em que Atticus serviu às forças armadas e, assim como em Watchmen (2019), é discutido a relação que o exército americano e os soldados pretos tem com os países que os Estados Unidos entraram em guerra no passado. No caso em Watchmen temos o Vietnam e em Lovecraft Country temos a Coreia. 

O espelhamento dessas duas séries não termina por aí. Lovecraft Country investe novamente na reparação histórica e nos traumas geracionais do massacre de Tulsa. Agora, inserindo os personagens principais em 1921 para eles viverem todos os horrores do que aconteceu naquele dia. Com isso, a sensação de distanciamento (mesmo que involuntário) gerado pelo flashback de Watchmen é reduzido com um episódio inteiro focado em trabalhar a amnésia cultural da sociedade americana a respeito desse fato histórico.

Infelizmente, existem episódios fracos durante a temporada, mais precisamente o 2, o 4 e 10. Eles são corridos e despejam informações sem permitir que elas sejam absorvidas pelo público. Isso cria uma sensação de que a história exigia mais tempo de tela, porém a vontade dos roteiristas de fazer episódios singulares obrigou eles a condensar tudo em apenas um, para que no seguinte os protagonistas já estejam em outro lugar, resolvendo outros problemas, dentro de outro gênero cinematográfico. Mesmo assim, existem discussões interessantes como o colonialismo e a apropriação do homem branco de artefatos e culturas inteiras. O exemplo mais prático abordado pela série são os museus europeus e americanos, onde praticamente todos os itens que estão ali em exposição pertencentes ao sul do globo foram saqueados ou obtidos de forma injusta ao longo da história.

Apesar desse foco louvável nas personagens femininas, Atticus é o fio condutor que une todos os episódios e, junto dele, a ancestralidade também se mantém presente ao longo da temporada.

O preconceito racial está enraizado na nossa sociedade, as culturas norte americana e brasileira ergueram-se através da escravidão e da desumanização daqueles que foram racializados pelo homem branco. Portanto, por essa estrutura complexa existir há séculos, a luta antiracista é uma luta a longo prazo, com pouca progressão perceptível. Eu e você dificilmente vamos colher os frutos desta luta, os resultados irão ficar para as próximas gerações, assim como a luta dos ex-escravizados, da revolta do Haiti e dos primeiros movimentos pretos ficaram para a nossa. Não existe futuro sem ancestralidade. A série expressa isso no seu roteiro, através da magia ser transmitida geracionalmente e também na edição dos episódios com inserção de narrações históricas de pessoas pretas e com o resgate de artistas negros esquecidos, como Sun Ra.

O racismo sempre termina em morte, mas em algumas culturas a morte não é o fim, ela é o ponto de partida.


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