Até o Fim – Não existe família perfeita

Nessa última semana pude ter o prazer de assistir ao filme Até o Fim (2020), de Ary Rosa e Glenda Nicácio. O filme foi exibido mais recentemente no Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul e traz uma história simples à primeira vista. Apenas à primeira vista, pois o longa consegue entregar um perfeito ambiente e emoções para sua história única. 

A história acontece dentro de um bar, trabalhando com múltiplos enredos e levando as personagens a muitos extremos. Quando uma obra ousa em não variar de locação, é necessário todo um jogo de cintura, se tratando de personagens e de roteiro, para manter a audiência interessada no resultado final. Quando es diretores Glenda e Ary (quem assina o roteiro do longa) decidem por contar a história destas irmãs, se reencontrando após quinze anos para receber a notícia sobre o falecimento do pai, fazem uma escolha ousada.

Mais ousado ainda é o roteiro do longa, com incríveis monólogos capazes de abraçar muito bem características do teatro e suas personagens extremamente reais e humoradas. Os muitos caminhos possíveis para o filme seguir, se tratando de uma reunião familiar em um momento de luto, se torna surpreendente a escolha dos diretores de realizar um encontro bem humorado. Bem humorado, sim, mas preenchido de conflitos e problemas mal resolvidos. Honestamente, uma das coisas mais singulares do filme está nos problemas não resolvidos entre as personagens, a forma como elas se ressentem umas com as outras e com seus pais. 

Isso nos leva à cereja do bolo, atrizes incríveis e com uma química magnífica entre si, capaz de trazer relações únicas entre as quatro irmãs do filme. Wal Dias dá vida à irmã mais velha da família, Geralda, a responsável pelo bar onde o enredo se desenrola e também a mulher que se encarregou de ter cuidado tanto de seu pai, quanto de sua mãe até o fim de suas vidas. A densidade da personagem de Wal permeia filme inteiro, considerando o fato dela ser quem recebe a ligação do hospital que irá dar o pontapé para a história ser iniciada.

As diversas facetas desta personagem são exploradas ao longo do filme, possibilitando revelar muito de sua relação com as irmãs e com seus pais. Pais estes que, apesar de não estarem presentes fisicamente ao longo do filme, ainda podemos sentir bem a presença de ambos no decorrer da obra. Afinal, a mãe e o pai das meninas são responsáveis pelas relações entre as mesmas, direta ou indiretamente. A medida que a conversa vai acontecendo podemos entender melhor a história por trás da relação entre as quatro irmãs e, mais do que tudo, entender as mágoas cultivadas entre elas.

Com o passar dos minutos, o filme apresenta cada uma das quatro irmãs numa conversa em uma mesa de bar. A reunião de família é um importante artefato para construir diferentes tipos de narrativa, mas, até assistir este filme, nunca havia me deparado com uma tão única em suas escolhas. Uma das coisas mais divertidas do longa é como as quatro irmãs são extremamente diferentes, mesmo tendo sido criadas no mesmo lar e pelos mesmos pais. As interações de Rose, interpretada pela Arlete Dias, são extremamente bem humoradas e isso não impede a personagem de entregar uma imensa profundidade emocional.

Não existe família perfeita, assim como também, na realidade, não existe uma relação fraterna perfeita. As quatro irmãs têm um sentimento de amor umas para com as outras, mesmo com mágoas de seus passados enevoando suas visões. Há uma jornada bem mais longa do que os quinze anos ali, há toda uma jornada de vida de cada uma e esta omite segredos e confusões do passado. Se existe uma coisa nesse filme é personalidade, não apenas em suas personagens marcantes, com incríveis diálogos e monólogos capazes de quebrar a quarta parede, mas a obra em si carrega uma forte personalidade, uma potente estética responsável por a fazer única.

O filme constrói mistérios ao longo de seus diálogos, ao longo das interações de suas personagens, que apenas elas sabem do que se tratam até o momento de revelar o segredo. Existem segredos pesados, existem segredos muito gostosos e gratificantes, existem lutas por trás de cada uma dessas quatro mulheres. Uma pequena menção para dois enormes talentos presentes no filme como as outras duas irmãs, Maíra Azevedo interpreta Mel e Jennyl Muller é Vilmar. 

Uma grande produtora de cinema baiana, ganhadora do Oscar, orgulhosa da carreira criada para si e por si lá fora no audiovisual internacional. A presença da personagem Mel, de Maíra Azevedo, proporciona incríveis momentos e as mais variadas emoções. Mais importante de tudo, ela fornece uma importante ferramenta de metalinguagem pois, apesar de se tratar do filme, aquilo não é um filme, mas sim a vida de suas personagens. 

No último – mas não menos importante – assento da mesa temos a esplêndida Vilmar, que é uma mulher trans. Embora seja a personagem mais complexa dessa narrativa, não apenas por ser transexual e lésbica mas pela sua história em particular com uma de suas irmãs, Vilmar termina por não ser tão bem aproveitada. Mesmo com um reduzido tempo de tela e desenvolvimento, foi capaz de deixar uma marca pessoal em mim por sua força, capaz de lidar com as violências que a cercam. 

A presença de Vilmar pode parecer didática, mas foi exatamente a melhor parte disto, por sentir a necessidade da audiência saber, compreender mais, sobre pessoas trans e como elas já aguentam muito de um mundo todo para serem obrigadas a se calarem ante transfobias.

Até o Fim é um filme profundo e cheio de camadas, capaz de levar seu espectador das risadas às lágrimas. Uma história peculiar sobre uma família cheia de mulheres com suas personalidades únicas e fortes, de suas diferentes maneiras. 


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