Em 2006 o mundo conheceu Sacha Baron Cohen. Aliás, o mundo conheceu Borat, o segundo melhor repórter do glorioso país Cazaquistão, personagem criado por Sacha Baron Cohen para um dos filmes mais sacanas e irônicos que eu já assisti na vida. O filme é um falso-documentário (mocumentary) onde Borat (interpretado pelo próprio Sacha), um repórter extremamente incomum de um país com costumes, digamos, bem diferentes da maior parte do Ocidente, vai aos Estados Unidos para registrar a vida no – segundo ele – maior país do mundo. O filme é um festival de exageros engraçadíssimos e, muitas vezes, desconfortáveis, que ironiza de forma bastante inteligente a conservadora sociedade daquele país, alfinetando pontos sensíveis que vão desde hábitos culturais à política.
Nada menos que 14 anos depois, Sacha decide retornar ao papel de Borat em uma nova empreitada pela “America”, descobrindo um país completamente diferente do que havia encontrado antes, com tiradas tão espertas quanto em seu filme anterior. Entretanto, não foi só Borat que encontrou um mundo diferente do de tantos anos atrás, Sacha Baron Cohen também encontra uma nova e complexa conjuntura, com o advento da internet, seus memes e threads, onde o politicamente correto está em ascensão e, como tudo, já está sendo engolido pelo capitalismo, e onde é ainda mais difícil (e cada vez mais) chamar atenção de um público bombardeado de polêmicas a cada segundo em seus celulares e redes sociais.
Estas mudanças se mostram ao mesmo tempo um desafio e um trunfo para o filme. Sacha, juntamente com a enorme equipe de roteiristas que o acompanha, se mostra ainda muito sagaz em se utilizar de exageros e estereótipos culturais para incomodar e fazer rir. Um humor muitas vezes difícil de engolir e que é quase um veneno para quem se constrange facilmente com vergonha alheia. Mas nada de muito novo em relação ao seus roteiros anteriores – além do Borat de 2006, tivemos Brüno (2009) e O Ditador (The Dictator, 2012), todos em parceria com o veterano da comédia Larry Charles na direção. Como já havia pontuado, o que temos de diferente é o próprio mundo de 2020, onde o personagem pode destilar todo o seu potencial de estranhamento em um palco completamente inédito para si.
Por outro lado, fazendo mais uma inevitável comparação com o filme de 2006, desta vez o personagem perde uma de suas maiores vantagens da viagem anterior, o fator anonimato. Naquele ano Sacha Baron Cohen era quase que um completo desconhecido do mundo inteiro, o que facilitou sua jogada de lidar com situações reais (ou que muitas vezes pareciam muito improvisadas), como as reações das pessoas com quem o repórter interagia, e isso era boa parte da graça do filme. Em 2020 o ator e roteirista, mas principalmente o personagem, são bastante conhecidos do público, ainda mais tendo em vista as várias polêmicas que o filme de 2006 havia causado na mídia, além do fato de que parte da campanha de venda da produção envolvia a presença do próprio personagem interpretado por Sacha em eventos e premiações. A perda deste fator é contornada de forma até sagaz, com o próprio roteiro usando-a como artifício para o humor (os disfarces de Borat são uma das grandes atrações do longa), mas é fato que, mesmo com a boa interpretação dos coadjuvantes, não consegui comprar tanto a ideia do documentário, que era tão forte em seu antecessor.
O plot do filme também não difere tanto da ideia maluca do primeiro. Mas trouxe dentro de seu humor debates pertinentes e já esperados sobre temas e tabus típicos da sociedade e do imaginário ocidental contemporâneo, como aborto, feminismo, racismo, entre vários outros. Mas o mais surpreendente foi a ligeireza do filme em abordar um tema tão atual (mesmo que já se passe quase um ano) como a pandemia de Covid-19. E Sacha é rápido em usar todo o negacionismo científico do governo Trump e seus apoiadores como piada, ainda que tenha perdido um pouco a oportunidade de brincar mais com a outra grande pandemia mundial vigente, a das informações falsas. A personagem de sua filha, Tutar (Maria Bakalova), foi também um acréscimo interessante, entregando o maior diferencial em relação ao formato de roteiro do primeiro filme, injetando uma possibilidade de relação afetiva na jornada do excêntrico repórter.
Tenho minhas dúvidas quanto a relevância e o alcance desta segunda jornada de Borat à terra do Tio Sam. Temo que, como muitas produções recentes, o filme seja esquecido em meio ao turbilhão em que estamos metidos. Mas temo ainda mais que o maior potencial da comédia de Sacha Baron Cohen se perca, em um mundo em que o exagero e o inacreditável que acompanhamos no filme está terrivelmente próximo demais da realidade.
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Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.