Ratched – Uma homenagem ao horror sem forçar demais

Em 1975, a atriz Louise Fletcher interpretou a Enfermeira Ratched no filme Um Estranho no Ninho (One Flew Over the Cuckoo’s Nest) e ganhou um Oscar por sua performance. A personagem circula a obra como a enfermeira chefe de um hospital psiquiátrico, não se aprofundando muito em sua vida pessoal ou em seu passado. Durante uma particular cena onde é aplicado o tratamento de eletrochoque é dado um vislumbre sobre um lado mais sombrio, de certa forma imortalizando a personagem como referência para a cultura pop. Inclusive sendo referenciada em outras mídias, dentre elas o seriado Once Upon a Time (2011 – 2018), onde foi interpretada por Ingrid Torrance.

A Netflix, junto de Ryan Murphy, anunciou mais cedo neste ano um seriado servindo de prólogo da personagem e protagonizado por ninguém mais, ninguém menos, que Sarah Paulson. Não revelando muito sobre a série através de seus trailers, foi prometido mais uma série Ryanmurphesca com a Sarah Paulson no elenco. Em particular a perspectiva não era muito animadora, vide a capacidade de Murphy pegar um enredo muito bom e se perder em dramas desnecessários fazendo a narrativa perder a graça. Foi uma surpresa me deparar com uma obra de terror capaz de trabalhar tão bem com sua história e seus personagens.

Os personagens são uma das partes mais interessantes dessa obra e a mais surpreendente, pois a um primeiro olhar parecem muito serem mais do mesmo. Sejamos completamente sinceros, quem já viu mais de duas temporadas de American Horror Story (2011 -), sabe como Ryan Murphy gosta de estereótipos de personagens. Não que os mesmos não funcionem, mas normalmente eles não vão para muito além do apresentado inicialmente em quesito de narrativa. 

Em Ratched (2020 -) as coisas funcionam de forma bem diferente, pois os personagens de apoio e também a protagonista vão muito além do esperado após sua primeira aparição. É como se o enredo brincasse com o conceito de estereótipos narrativos de forma surpreendente e entregasse vários personagens, não apenas memoráveis, mas com tramas inesperadas. É admirável a profundidade dada aos mesmos, assim como um real valor dado a seus enredos dentro da história. 

Se passando dentro de um hospital psiquiátrico no final da década de quarenta, é quase impossível não se deparar com erros cometidos na época com pacientes nesse tipo de instituição. Especialmente se tratando de uma obra de Murphy, conhecido por abordar em seus trabalhos a existência de personagens não heterossexuais. Na trama existe uma forte presença da questão de como a homossexualidade é tratada como um transtorno psiquiátrico e como isso afeta personagens que não são pacientes. De forma bem explícita a série consegue mostrar os horrores de tratamentos usados na época, sendo capaz de colocar esses horrores pela ótica dos personagens.

Não apenas isso, a trama consegue fazer algo menos característico de uma história de horror Ryanmurphyana, pelas demais terem perdido o peso dramático das mortes em suas narrativas. Ao longo dos anos as criações de Murphy passaram a apresentar frequentemente histórias onde personagens eram introduzidos e morriam sem permitir a trama sentir o peso das mortes. Esse é um dos pontos mais poderosos da primeira – do que podem ser algumas mas também não muitas – temporada de Ratched. Personagens são introduzidos, às vezes eles morrem, mas suas mortes são importantes para o enredo da trama e dos demais personagens e não apenas um artifício para causar choque. 

Podendo soar como alguém não muito fã de Ryan Murphy, me surpreendi com o fato da série como um todo ter tido um enredo agradável, conciso e capaz de se encerrar de forma satisfatória. Não podemos nos deixar enganar, não é uma minissérie como Hollywood, então existe uma grande abertura para outras temporadas mas os arcos apresentados na sua primeira temporada são bem finalizados. Não são apresentadas informações desnecessárias ao longo dos oito episódios da temporada, e nem acontece de serem apresentadas informações e enredos deixados de lado ou esquecidos. 

Se por muitas temporadas da série vizinha o talento de Sarah Paulson foi desperdiçado com personagens muito parecidas ou com pouco valor dramático, o oposto foi trabalhado aqui. A protagonista é uma das coisas capazes de fazer a série ser tão interessante de se assistir, por não ser exatamente uma pessoa dentro do compasso de moralidade. Embora seja uma mulher aparentemente bem severa, à personagem é dada muitas camadas pela atriz que a interpreta. Com certeza o enredo e os roteiros, assinados por nomes como Jennifer Salt, Ian Brennan, Evan Romansky, fazem a personagem funcionar bem como ela faz durante a trama. 

Além de contar com a incrível performance de Cynthia Nixon, cuja personagem é uma surpresa de como se torna envolvida nos eventos da série, a série também permite que Sophie Okonedo se destaque como uma paciente com múltiplas personalidades. Ambas são apenas parte do elenco capaz de se destacar incrivelmente dentro da obra, mas com certeza sem ambas a série perderia muito em qualidade. A importância da química entre os personagens é extrema, eles conseguem parecer tão naturais (ou às vezes tão oposto disto) quando em cenas juntos. 

Mergulhando com um direção de arte bem específica e marcante, a viagem de oito episódios ao Hospital Estadual Lucia é de fato uma experiência única. Seus personagens não conseguem durar até o final da temporada, ao menos não todos, mas a história consegue manter o expectadores interessado sem forçar dramas desnecessários. Com um espetacular jogo de câmera e iluminação a obra consegue transmitir através de suas imagens sentimentos particulares de forma satisfatória. A série está disponível no serviço de streamming da Netflix desde 18 de Setembro.


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