Amor e Sorte – Episódio 1: Lúcia e Gilda – Recriando os afetos

Esses dias estive conversando com uns amigos sobre as dificuldades de se retornar à casa dos pais. Ouvi relatos de como isso pode ser muito bom por um tempo, mas logo a relação se desgasta e vários costumes que haviam ficado no passado retornam pra dar uma chacoalhada e os laços começam a afrouxar. A distância pode fazer bem em qualquer relação, disso não tenho dúvidas, mas é triste perder o contato com quem amamos. Ao mesmo tempo, comecei a pensar que (querer) voltar eventualmente ao colo dos pais pode também ser um privilégio. Quantas pessoas não tiveram relações tão tóxicas com seus pais que não conseguem nem pensar na possibilidade de um retorno ao que já passaram? Ou mesmo, quantas pessoas ao menos tiveram algum tipo de relação parental qualquer que seja? Bom, eu mesmo não posso falar muito sobre esse retorno a casa dos pais, já que moro e sempre morei com minha mãe. As vezes me flagro refletindo sobre os prós e os contras desse convívio, e sei que um dia, que está cada vez mais próximo, vou precisar deixá-la. Os motivos de eu ainda morar com ela não vêm ao caso, apenas posso dizer que mesmo convivendo diariamente com minha mãe, só nós dois e mais ninguém, ainda não acho que temos uma relação muito próxima, ao ponto de contarmos segredos e detalhes de nossas vidas um ao outro, de nos abraçarmos e falar palavras de afeto. É algo que sinto falta, e fico pensando se seria diferente se eu tivesse saído de casa no fim da minha adolescência como havia planejado.

Com alguma frequência tento trazer minha mãe pra me acompanhar em uma das minhas principais atividades na vida (talvez a principal), que é ver filme ou série. Geralmente é necessário que seja algo em português e que tenha um grau de dinâmica que capture sua atenção. Pra contextualizar, eu nunca na vida vi minha mãe acompanhar uma novela ou seriado na TV, como manda o manual das mães, e quando a levei pra assistir Que Horas Ela Volta? (2015) no cinema tive que cutucá-la várias vezes ao ouvir seu ronco. Mas quando sentei pra assistir o primeiro episódio de Amor e Sorte (2020 -) pensei que talvez fosse algo que a animaria, principalmente por ter apenas 45 minutos.

Amor e Sorte é a nova minissérie da Globo, idealizada por Jorge Furtado, e que terá apenas quatro episódios, cada um contando uma história diferente que se passa nesse período de quarentena ao qual ainda estamos passando (mesmo que algumas pessoas inconsequentes e irresponsáveis achem que já acabou). O primeiro episódio, que foi ao ar esta semana e foi dirigido por Andrucha Waddington, nos apresenta a Lúcia (Fernanda Torres), uma executiva de alguma empresa grande genérica que trabalha com ações e planilhas, e Dona Gilda (Fernanda Montenegro), uma senhora de 90 anos que vive sozinha no Rio de Janeiro, curtindo sua melhor idade como acha que bem merece. Lúcia está levando sua mãe para uma chácara isolada na serra, depois de saber por sua tia Olga (Arlete Salles) que Gilda estava vivendo e se expondo como se o vírus não existisse, e a sequência inicial no trajeto até a casa já nos mostra o quanto mãe e filha são completamente diferentes, enquanto Lúcia se blinda totalmente ao sair do carro durante uma parada para comprar alguma coisa, com máscara, luvas, capacete de acrílico (o tal face shield), a mãe, por sua vez, decide que seria um ótimo momento para voltar a fumar.

A divergência entre as duas fica cada vez mais acentuada, e enquanto Gilda se mostra extremamente entediada naquela situação, sentindo-se encarcerada e vigiada pela própria filha, Lúcia continua presa a seu desgastante trabalho, no famigerado home office, onde sabemos que quase sempre nos cansamos muito mais do que quando não era assim. A mãe não consegue entender como a filha chegou àquela situação, enquanto a filha não consegue aceitar que a mãe parece querer viver como se não tivesse mais nada a perder. O fato de as duas Fernandas serem realmente mãe filha, além de atrizes inacreditavelmente talentosas, foi fundamental para que acreditássemos naquela relação, mas também foi de fácil identificação já que é um tipo de laço que muitos de nós temos, seja com nossos pais ou com pessoas que nos acompanham desde sempre. Eu mesmo tenho plena certeza que minha mãe não faz a menor ideia do que eu faço e do motivo de eu ter escolhido ser artista e trabalhar com cultura. Já tentei algumas vezes explicá-la o que é um podcast e uma vez ela assistiu uma live minha sobre X-Men e seu único comentário foi que eu precisava cortar o cabelo.

Lúcia e Gilda não têm a mínima paciência uma com a outra, até que após um simples evento envolvendo uma armadilha mal sucedida para pegar uma galinha desemboca em uma chave de afeto entre as duas, um retorno a um vínculo que outrora já tiveram, lembranças que quase parecem fazer parte de outra vida, ou da vida de outras pessoas. E talvez fossem mesmo outras pessoas. Um tempo diferente, sentimentos diferentes. Ou não, talvez sejam as mesmas pessoas, mas pessoas mudam, se transformam, aprendem e desaprendem várias coisas neste caminho.

A armadilha que Gilda planeja para segurar sua filha em sua companhia por mais um tempinho também acaba não dando certo assim como a de Lúcia para fisgar a galinha. Pode não ter funcionado como deveria, mas em ambos os casos, o objetivo parece ter sido atingido. Mãe e filha redescobriram a possibilidade de uma relação gentil e afetuosa, ou talvez mais do que redescobriram, reinventaram essa relação, já que, sendo pessoas diferentes das que foram em outra vida, recriar é mais certeiro do que tentar repetir algo que já passou.

Ao fim do episódio eu chorava e quando olhei pra minha mãe ela sorria. Já éramos duas pessoas diferentes das que haviam sentado no sofá pra assisti-lo. Nos abraçamos como há muito tempo não fazíamos. Não sei se nossa relação vai melhorar. Não sei qual vai ser sua reação quando eu disser que vou me mudar em breve. Mas sei que quero reinventar nossa relação, assim como Lúcia e Dona Gilda o fizeram.