Vida perfeita, mentira perfeita. Ornamentada com grandes casas, casamentos exemplares, o que mais poderia ter? Com uma abertura contagiante, um tom cínico, cômico e misterioso, Big Little Lies (2017-2019) nos apresentou o universo de maternidade e rivalidade, que tangem o trio de protagonistas residentes da categórica comunidade de Monterey, Califórnia. Se por um lado Madeline (Reese Witherspoon) era conhecida pela personalidade esnobe que não aceitava levar desaforo para casa, Celeste (Nicole Kidman), invejável pelo cônjuge e família, ter a novata Jane (Shailene Woodley) em busca de se restabelecer ao lado do filho Ziggy (Iain Armitage), e as fagulhas de picuinhas Renata (Laura Dern) e Bonnie (Zoë Kravitz), a atração da HBO – adaptação do livro Pequenas Grandes Mentiras escrito por Liane Moriarty -, estava disposta a mostrar bem mais do que um trivial retrato feminino ostentado luxo – afinal, o cartaz principal focava nos olhares suspeitos do tripé, enquanto cortava suas bocas da edição.
Além das experiências maternas que compartilham, da espontânea amizade que surgiu e do fato de seus filhos estudarem na mesma escola, a linha de ruptura se deu perante um assassinato no qual se vêem envolvidas. Tendo tal descrição, é de se imaginar uma trama que instiga o suspense sobre o que culminou o crime e a produção assim o fez, pondo mais lenha na fogueira ao não revelar a vítima e a forma com a qual morreu, apenas onde tudo aconteceu. Porém, a minissérie não tinha só mais uma fórmula a mostrar através de um elenco estrondoso, mas também – e principalmente – vinha para contar histórias de diferentes mães/mulheres.
Em um desses momentos incríveis em que a arte conversa abertamente com a realidade, o drama de suspense psicológico criado por David E. Kelley, chegava com uma liberdade narrativa inovadora acerca de personagens femininas, coincidentemente, quando o movimento #metoo possibilitava as denúncias contra os célebres da indústria americana. Por trás de vidas aparentemente perfeitas, o alto padrão escondia a realidade de vivências abaladas. Através da contida direção e excelente montagem, Jean-Marc Vallée definia uma sincronia cativante, que encontrava seu ápice pela analogia traçada com o suspense narrado. O que tornava tudo mais sufocante e incrível de acompanhar, diante do equilíbrio para as histórias retratadas.
Com sete episódios, a produção impressionava pelo domínio técnico, mas, principalmente, em razão da segurança que mantinha a narrativa, sabiamente definida a um ponto certo de parada: ao tempo que não enrolava para satisfazer acerca do mistério que começou, pontuava a importância de se contar as histórias de tantas mulheres além da fórmula. Relatos de cumplicidade, resiliência, busca por justiça, relacionamentos abusivos, abusos sexuais e violência doméstica. Por trás das vidas pintadas como perfeitas, existem as inúmeras rachaduras mascaradas pelas pequenas grandes mentiras. É o que preferimos contar – ou muitas vezes deixamos de expor, por ser mais fácil assim.
Partir do âmbito familiar foi só o início do que a série iria explorar. Se atendo exatamente neste grupo, o show gritava capítulo após capítulo o quanto as relações ali eram mais que complicadas: eram sofridas, abafadas, e um nível pesado de psicológicos agravados. Num rápido resumo, podemos lembrar de uma Madeline completamente amiga e protetora – retomemos ao exemplo forte de quão rápido se apegou a Jane no 1×01 -, impulsiva e que a todo custo iria travar seus conflitos, e nem Renata ficaria no seu caminho. Mais tarde, percebemos a projeção da personagem em ter a vida perfeita que não conseguia a punir com autocobrança de ser a melhor para si e a quem se importava, sendo isso um desgaste diante de cada nova falha que surgia.
Já com Celeste e Jane, foi onde a narrativa concentrou os maiores exemplos de danos físicos e mentais oriundos de abusos. A personagem vivida brilhantemente por Shailene Woodley apontava um estado caótico de repressão, mediante o abuso sexual que sofreu, enquanto tentava conciliar uma boa maternidade para o filho fruto do ato sofrido e superar a tragédia. Com Celeste, para o retrato de relacionamento tóxico, abusivo e de violência doméstica inferidos foi de tamanha importância ter Nicole Kidman no papel. O que ela precisou contestar, descobrir e entender na realidade experimentada dentro da própria casa, pelo homem com quem casou, Perry (Alexander Skarsgård), valeu por mostrar a nocividade, algo que não é tão fácil lidar, nem a decisão de sair vem de um dia para o outro.
Bonnie e Renata são mais dois exemplos de mulheres dentro da trama sobrevivendo as suas batalhas diárias. São exemplos de maternidade, carreiras, casamento e famílias que foram traçados, onde os filhos não estavam ali como peças superficiais na narrativa, mas como participantes diretos desse universo – onde ganharam mais profundidade no ambiente escolar, contrapôs reflexos de comportamentos e questões éticas. A explosão pelas pequenas mentiras, foi um triunfo por contar com um elenco poderoso, falar de realidades femininas, suas virtudes e empoderamento, destacado por uma maneira rica e inteligente.
A audiência de sucesso, ganhar oito prêmios das dezesseis indicações no Emmy em 2017, fez a minissérie ser renovada para mais sete episódios como uma série completa. Como consequência, o show se apoiou em dar continuidade aos eventos do 1×07 de forma original – que não precisava -, e apesar de não ter agradado tanto o público quanto a temporada anterior, o segundo ano adicionou mais camadas a personagens como Bonnie, e mais nomes no elenco – dentre eles Crystal Fox vivendo a mãe de Bonnie e Meryl Streep, a mãe de Perry -, sendo mais uma vez estrondoso na audiência e quebrando recordes.
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Ama ouvir músicas, e especialmente, não cansa de ouvir Unkle Bob. Por mais que critique, é sempre atraído por filmes de terror massacrados. Sua capacidade de assistir a tanto conteúdo aleatório surpreende a ele mesmo, e ainda que tenha a procrastinação sempre por perto, talvez escrevendo seja o seu momento que mais se arrisca.